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Entre as imagens ultimamente mais comentadas estão a que nos chegaram de Pequim, no dia 8 de Agosto, da abertura dos Jogos Olímpicos. Nelas surgiu a encantadora Lin Miaoke (9 anos) que cantou uma Ode à China. Aliás, ela não cantou, fez playback: a voz pertencia, de facto, a outra criança, Yang Peiyi (7 anos). Para a organização, a primeira tinha uma imagem mais adequada e, daí, a opção pelo playback.
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Confesso que não tenho gosto nenhum em brincar com as mais delicadas questões políticas e culturais. Assim, parece-me vergonhosamente gratuito, seja sob que pretexto for, reduzir a história secular do povo chinês e, em particular, as suas contribuições artísticas (incluindo, claro, no cinema contemporâneo) à imagem de um “rebanho” humano. Do mesmo modo, sou sensível à delicada questão da defesa dos direitos humanos na China (e, em particular, no Tibete), embora isso não me pareça legitimar uma visão de tão fascinante país a um governo “mau” de um lado e um povo “silencioso” do outro.
Não estou a caricaturar, pela simples razão de que é essa lógica grosseira que podemos encontrar em muitos espaços da Internet. Assim, insisto, o episódio de Pequim foi frequentemente referido a partir de um agressivo maniqueísmo: fazer playback seria o equi-valente dos mais tenebrosos métodos de repressão política.
Na verdade, as formas de ignorância favorecidas, e muito amplia-das, pela Internet podem ser assustadoras (sem que isso, obviamente, nos faça renegar as maravilhas da World Wide Web). Neste caso, estamos perante uma visão tão redutora, para além de moralista, que dispensa o conhecimento de toda a história do género musical ao longo do século XX, em particular na produção dos grandes estúdios de Hollywood. Basta ver o clássico Serenata à Chuva (1952) para ficar a saber que o playback, com todas as suas ambivalências técnicas e humanas, foi um elemento constituinte da própria gestação do musical.
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Lembram-se de My Fair Lady, a genial adaptação musical do Pigmalião, de Bernard Shaw, realizada por George Cukor? Tendo em conta que My Fair Lady, ainda por cima, ganhou oito Óscares (incluindo melhor filme), será que podemos deduzir que a democracia americana já foi uma sangrenta ditadura? Ou andamos todos enganados e, afinal, Audrey Hepburn era chinesa?