Como foi amplamente noticiado, na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim uma criança cantou uma Ode à China em playback. Vale a pena regressar ao assunto, interrogando algumas formas automáticas de "politização" com que podemos deparar na Internet — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 de Agosto).
Entre as imagens ultimamente mais comentadas estão a que nos chegaram de Pequim, no dia 8 de Agosto, da abertura dos Jogos Olímpicos. Nelas surgiu a encantadora Lin Miaoke (9 anos) que cantou uma Ode à China. Aliás, ela não cantou, fez playback: a voz pertencia, de facto, a outra criança, Yang Peiyi (7 anos). Para a organização, a primeira tinha uma imagem mais adequada e, daí, a opção pelo playback.
Na imprensa de todo o mundo, com mais ou menos ironia, por vezes com alguma desilusão, a “troca” foi amplamente referida, embora sem empolar a sua dimensão muito particular. Não tem sido assim na Internet e, mais especificamente, no espaço dos blogs. Para muito boa gente, de todos os cantos do planeta, Lion Miaoke e Yang Peiyi foram mesmo as pobres vítimas dos métodos de uma terrível ditadura.
Confesso que não tenho gosto nenhum em brincar com as mais delicadas questões políticas e culturais. Assim, parece-me vergonhosamente gratuito, seja sob que pretexto for, reduzir a história secular do povo chinês e, em particular, as suas contribuições artísticas (incluindo, claro, no cinema contemporâneo) à imagem de um “rebanho” humano. Do mesmo modo, sou sensível à delicada questão da defesa dos direitos humanos na China (e, em particular, no Tibete), embora isso não me pareça legitimar uma visão de tão fascinante país a um governo “mau” de um lado e um povo “silencioso” do outro.
Não estou a caricaturar, pela simples razão de que é essa lógica grosseira que podemos encontrar em muitos espaços da Internet. Assim, insisto, o episódio de Pequim foi frequentemente referido a partir de um agressivo maniqueísmo: fazer playback seria o equi-valente dos mais tenebrosos métodos de repressão política.
Na verdade, as formas de ignorância favorecidas, e muito amplia-das, pela Internet podem ser assustadoras (sem que isso, obviamente, nos faça renegar as maravilhas da World Wide Web). Neste caso, estamos perante uma visão tão redutora, para além de moralista, que dispensa o conhecimento de toda a história do género musical ao longo do século XX, em particular na produção dos grandes estúdios de Hollywood. Basta ver o clássico Serenata à Chuva (1952) para ficar a saber que o playback, com todas as suas ambivalências técnicas e humanas, foi um elemento constituinte da própria gestação do musical.
Claro que ninguém quer menorizar a verdade artística de um corpo que canta com... a sua própria voz. Que diabo! Não vamos passar a dizer que Maria Callas, coitada, até tentava cantar... Acontece que os exemplos de play-back são desconcertantemente frequentes na história do espectáculo musical. Há mesmo o caso limite da cantora Marni Nixon que se “especializou” em tais tarefas. Entre os seus muitos e notáveis playbacks estão os de Natalie Wood, em West Side Story (1961), e Audrey Hepburn [foto em cima], em My Fair Lady (1964).
Lembram-se de My Fair Lady, a genial adaptação musical do Pigmalião, de Bernard Shaw, realizada por George Cukor? Tendo em conta que My Fair Lady, ainda por cima, ganhou oito Óscares (incluindo melhor filme), será que podemos deduzir que a democracia americana já foi uma sangrenta ditadura? Ou andamos todos enganados e, afinal, Audrey Hepburn era chinesa?
Entre as imagens ultimamente mais comentadas estão a que nos chegaram de Pequim, no dia 8 de Agosto, da abertura dos Jogos Olímpicos. Nelas surgiu a encantadora Lin Miaoke (9 anos) que cantou uma Ode à China. Aliás, ela não cantou, fez playback: a voz pertencia, de facto, a outra criança, Yang Peiyi (7 anos). Para a organização, a primeira tinha uma imagem mais adequada e, daí, a opção pelo playback.
Na imprensa de todo o mundo, com mais ou menos ironia, por vezes com alguma desilusão, a “troca” foi amplamente referida, embora sem empolar a sua dimensão muito particular. Não tem sido assim na Internet e, mais especificamente, no espaço dos blogs. Para muito boa gente, de todos os cantos do planeta, Lion Miaoke e Yang Peiyi foram mesmo as pobres vítimas dos métodos de uma terrível ditadura.
Confesso que não tenho gosto nenhum em brincar com as mais delicadas questões políticas e culturais. Assim, parece-me vergonhosamente gratuito, seja sob que pretexto for, reduzir a história secular do povo chinês e, em particular, as suas contribuições artísticas (incluindo, claro, no cinema contemporâneo) à imagem de um “rebanho” humano. Do mesmo modo, sou sensível à delicada questão da defesa dos direitos humanos na China (e, em particular, no Tibete), embora isso não me pareça legitimar uma visão de tão fascinante país a um governo “mau” de um lado e um povo “silencioso” do outro.
Não estou a caricaturar, pela simples razão de que é essa lógica grosseira que podemos encontrar em muitos espaços da Internet. Assim, insisto, o episódio de Pequim foi frequentemente referido a partir de um agressivo maniqueísmo: fazer playback seria o equi-valente dos mais tenebrosos métodos de repressão política.
Na verdade, as formas de ignorância favorecidas, e muito amplia-das, pela Internet podem ser assustadoras (sem que isso, obviamente, nos faça renegar as maravilhas da World Wide Web). Neste caso, estamos perante uma visão tão redutora, para além de moralista, que dispensa o conhecimento de toda a história do género musical ao longo do século XX, em particular na produção dos grandes estúdios de Hollywood. Basta ver o clássico Serenata à Chuva (1952) para ficar a saber que o playback, com todas as suas ambivalências técnicas e humanas, foi um elemento constituinte da própria gestação do musical.
Claro que ninguém quer menorizar a verdade artística de um corpo que canta com... a sua própria voz. Que diabo! Não vamos passar a dizer que Maria Callas, coitada, até tentava cantar... Acontece que os exemplos de play-back são desconcertantemente frequentes na história do espectáculo musical. Há mesmo o caso limite da cantora Marni Nixon que se “especializou” em tais tarefas. Entre os seus muitos e notáveis playbacks estão os de Natalie Wood, em West Side Story (1961), e Audrey Hepburn [foto em cima], em My Fair Lady (1964).
Lembram-se de My Fair Lady, a genial adaptação musical do Pigmalião, de Bernard Shaw, realizada por George Cukor? Tendo em conta que My Fair Lady, ainda por cima, ganhou oito Óscares (incluindo melhor filme), será que podemos deduzir que a democracia americana já foi uma sangrenta ditadura? Ou andamos todos enganados e, afinal, Audrey Hepburn era chinesa?