No Festival de Curtas Metragens de Vila do Conde foi possível ver alguns títulos exemplares das encruzilhadas do cinema contemporâneo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Julho), com o título 'Entre tradição e classicismo'.
Alguns dias no Festival de Curtas Metragens de Vila do Conde (5/13 Julho) foram suficientes para confirmar uma tendência que o certame tem sabido expor e, de algum modo, celebrar. Poderíamos chamar-lhe: reconfiguração das imagens tradicionais. Que é como quem diz: o cinema contemporâneo vive de uma constante reavaliação da sua própria vocação de reprodução do mundo. As imagens digitais, em particular, podem estar na origem de filmes muito “bons” ou muito “maus”, mas é um facto que a sua crescente importância (estética e económica) está a obrigar o cinema a reavaliar muitos modelos clássicos.
Penso, por exemplo, no teledisco realizado por Patrick Daughters para uma canção da banda americana Liars (Plasters Casts of Everything), vencedor da secção de “Vídeos Musicais”. Sem deixar de cumprir a função de “ilustração” da canção, o teledisco aposta num jogo de sobreposições de imagens que é tanto mais desconcertante quanto desafia a estabilidade de representação dos próprios corpos.
Aliás, a questão do corpo como representação emerge, de forma insólita, num magnífico filme de animação, de título inglês (Tile Jail the Toilet Tale), mas produzido em Portugal e co-realizado por João Rodrigues, Soetkin Verstegen e Rodrigo Areias [foto em cima]. Digamos que se trata da história de uma menina que tem dificuldade em lidar com os objectos de uma casa de banho: através de uma experiência no mínimo bizarra, mas afinal poética, ela protagoniza um incrível processo de transformação da sua identidade corporal, como se, entre a materialidade do corpo e a pura abstracção das linhas e cores, o cinema se reinventasse como palco de todas as formas possíveis do factor humano.
Por curioso contraste, vale a pena citar alguns outros belíssimos filmes de Vila do Conde, empenhados em conservar matrizes mais clássicas de abordagem da experiência humana. O caso mais espantoso será o de Love You More, obra-prima de 15 minutos (foi o derradeiro trabalho de Anthony Minghella como produtor) com realização de Sam Taylor-Wood. É a história de um fulgurante encontro amoroso entre Georgia e Peter, alunos de um colégio londrino, em 1978; a descoberta do single Love You More, dos Buzzcocks, vai servir de enquadramento mágico a uma paixão que Taylor-Wood encena com a intensidade própria da grande tradição realista do cinema britânico. Convém não esquecer também outro filme português, A Felicidade, de Jorge Silva Melo, delicado exercício romanesco, colado à vibração dos actores, sobre a viagem de um homem (Fernando Lopes), a caminho do hospital, conduzido pelo filho (Pedro Gil). E ainda Les Paradis Perdus, de Hélier Cisterne, evocação de Maio 68, em Paris, que coloca em cena o inevitável “conflito de gerações” de modo tão inesperado quando perturbante [foto ao lado].
O certame de Vila do Conde conseguiu assim, uma vez mais, confrontar-nos com a encruzilhada de formas, técnicas e narrativas que definem o essencial da produção cinematográfica contemporânea. É um panorama há muito alheio aos maniqueísmos mais pueris (“pró” digital ou “anti” digital), onde as evidências mais cruas podem coexistir com os mais delirantes artifícios.
Alguns dias no Festival de Curtas Metragens de Vila do Conde (5/13 Julho) foram suficientes para confirmar uma tendência que o certame tem sabido expor e, de algum modo, celebrar. Poderíamos chamar-lhe: reconfiguração das imagens tradicionais. Que é como quem diz: o cinema contemporâneo vive de uma constante reavaliação da sua própria vocação de reprodução do mundo. As imagens digitais, em particular, podem estar na origem de filmes muito “bons” ou muito “maus”, mas é um facto que a sua crescente importância (estética e económica) está a obrigar o cinema a reavaliar muitos modelos clássicos.
Penso, por exemplo, no teledisco realizado por Patrick Daughters para uma canção da banda americana Liars (Plasters Casts of Everything), vencedor da secção de “Vídeos Musicais”. Sem deixar de cumprir a função de “ilustração” da canção, o teledisco aposta num jogo de sobreposições de imagens que é tanto mais desconcertante quanto desafia a estabilidade de representação dos próprios corpos.
Aliás, a questão do corpo como representação emerge, de forma insólita, num magnífico filme de animação, de título inglês (Tile Jail the Toilet Tale), mas produzido em Portugal e co-realizado por João Rodrigues, Soetkin Verstegen e Rodrigo Areias [foto em cima]. Digamos que se trata da história de uma menina que tem dificuldade em lidar com os objectos de uma casa de banho: através de uma experiência no mínimo bizarra, mas afinal poética, ela protagoniza um incrível processo de transformação da sua identidade corporal, como se, entre a materialidade do corpo e a pura abstracção das linhas e cores, o cinema se reinventasse como palco de todas as formas possíveis do factor humano.
Por curioso contraste, vale a pena citar alguns outros belíssimos filmes de Vila do Conde, empenhados em conservar matrizes mais clássicas de abordagem da experiência humana. O caso mais espantoso será o de Love You More, obra-prima de 15 minutos (foi o derradeiro trabalho de Anthony Minghella como produtor) com realização de Sam Taylor-Wood. É a história de um fulgurante encontro amoroso entre Georgia e Peter, alunos de um colégio londrino, em 1978; a descoberta do single Love You More, dos Buzzcocks, vai servir de enquadramento mágico a uma paixão que Taylor-Wood encena com a intensidade própria da grande tradição realista do cinema britânico. Convém não esquecer também outro filme português, A Felicidade, de Jorge Silva Melo, delicado exercício romanesco, colado à vibração dos actores, sobre a viagem de um homem (Fernando Lopes), a caminho do hospital, conduzido pelo filho (Pedro Gil). E ainda Les Paradis Perdus, de Hélier Cisterne, evocação de Maio 68, em Paris, que coloca em cena o inevitável “conflito de gerações” de modo tão inesperado quando perturbante [foto ao lado].
O certame de Vila do Conde conseguiu assim, uma vez mais, confrontar-nos com a encruzilhada de formas, técnicas e narrativas que definem o essencial da produção cinematográfica contemporânea. É um panorama há muito alheio aos maniqueísmos mais pueris (“pró” digital ou “anti” digital), onde as evidências mais cruas podem coexistir com os mais delirantes artifícios.