Por vezes (rarísimas vezes), há filmes que nos devolvem o prazer incauto de um cinema primitivo, naïf, disponível para a sensua-lidade básica da fala e também para coisas tocantes e indizíveis como a materialidade da pele humana e a beleza do vento nas árvores. Os Amores de Astrea e de Celadon, de Eric Rohmer, é um desses filmes: uma aventura de contido, mas convulsivo, erotismo que adapta o clássico de Honoré d'Urfé (1568-1625), L'Astrée, publicado nos primeiros anos do séc. XVII.
Por um lado, este é um objecto que nos faz reencontrar o valor primordial, e eminentemente sensual, da fala no cinema de Eric Rohmer — lembremos o sentido mágico, paradoxalmente realista, dos seus "Seis Contos Morais", com inevitável destaque para essa hoje em dia quase invisível obra-prima que é A Minha Noite em Casa de Maud (1969). Os Amores de Astrea e de Celadon nasce de uma atitude contundente (mas também, à sua maneira, cândida) em que o cinema não teme a contaminação estética da palavra nem o valor primitivo da imagem como contemplação da natureza. Como sempre, o risco da modernidade enreda-se com a militante paixão do classicismo. É um dos grandes filmes do Verão. E, claro, um dos acontecimentos do ano cinematográfico.