Dois belos filmes na noite de quinta-feira, em Vila do Conde, um na secção competitiva internacional, outro na nacional: primeiro, o indiano (Un)Ravel, de Siddarth Sinha, propondo uma enigmática, mas concisa, textura simbólica sobre um jovem de uma só vez confrontado com a iminência da morte da mãe e a descoberta da sexualidade; o segundo, A Felicidade, de Jorge Silva Melo, viagem breve com um homem cujo filho o conduz ao hospital, com interpretações de Fernando Lopes e Pedro Gil [fotos], e ainda Miguel Borges.
Embora por vias obviamente diversas, ambos os filmes se confron-tam com uma questão eminentemente moderna: como (re)construir o espaço dramático a partir de um olhar enraizado na fragili-dade "realista" do quotidiano? No caso indiano, assistimos a uma intensificação dos dados materiais que, surpreendentemente, abre o filme para uma iconografia festiva e sensual (as cores das paisa-gens, o sangue, a presença dos animais, etc.) a que talvez pos-samos chamar "surrealista". No filme português, o contraponto entre o automóvel e a visão (ou o pressentimento) do mar cria um ambíguo sentimento do tempo, a meio caminho entre a solidão partilhada e a nitidez indizível da morte — algo cujo assombramento apetece aproximar da serena teatralidade do fado.
A noite começou com uma homenagem a Manoel de Oliveira, de quem se viu o episódio realizado para Chacun son Ciné-ma, o filme que, em 2007, assinalou os 60 anos do Festival de Cannes. Presente na sala, num discurso de subtil gravidade e saborosa ironia, Oliveira falou da inevitabilidade de os artistas tratarem daquilo que podem conhecer, isto é, o passado e o presente, deixando o futuro para os políticos.
(Um precalço que é sempre penalizador e corre o risco de desgastar a relação do festival com o público: a noite foi sofrendo sucessivos atrasos e a sessão da competição nacional, marcada para as 23h00, começou cerca da meia noite e vinte).