quinta-feira, julho 17, 2008

Discos da semana, 14 de Julho

Em inícios de 90 era um visionário disposto a desafiar-nos a, consigo, experimentar o cruzamento de linguagens e referências apenas possível ao fim de meio século de cultura rock’n’roll, abarcando ainda heranças folk e a assimilação do hip hop (e universos ao seu redor). Agora, aos 38 anos, ainda longe de instalado no “conforto” de uma linguagem conquistada, Beck volta a confirmar que é mais que uma figura marcante na música dos anos 90. É, antes, um veterano disposto a repensar a obra feita e com vontade de, ao invés de viver da repetição do que já conquistou, partir para o experimentar de novos desafios. Nos últimos anos, num processo que chega mesmo a cruzar-se com os tempos em que gravava The Information, voltou a descobrir os seus discos de vinil. E deu por si a ouvir nuggets, memórias suculentas de 45 rotações que contam a história do garage rock, com passagem inevitável pela etapa de finais de 60 que foi berço da cultura psicadélica. A vontade, antiga, de fazer finalmente o seu “disco de rock” começou a ganhar forma. Ao mesmo tempo, o homem que há muito nos fez já saber que a fama e fortuna não seriam nunca o seu caminho, encontrou novas verdades na procura de um novo sentido para uma noção de simplicidade. O décimo álbum de originais Beck devolve-o ao seu melhor, depois de experiências competentes, mas sem rumo aparente, mais feitas da revisão de si mesmo que do pensar de novas ideias, em Guero (2004) e The Information (2006). Modern Guilt, produzido por Danger Mouse e contando com a colaboração Cat Power em dois temas é, na verdade, o verdadeiro sucessor de Mutations (1998) que já tardava. Um álbum que parte de um olhar sobre a concepção clássica da canção e encontra moldura para a acção num conjunto de assimilações de heranças da memória do psicadelismo de finais de 60. Isto sem abdicar de marcas pessoais, de uma sólida curiosidade pelos mecanismos do ritmo a um não menos antigo interesse pela folk. De composição simples e arranjos bem elaborados, Modern Guilt apresenta dez canções, numa sábia economia de 34 minutos de acontecimentos onde não mora nunca a sensação de um passo em falso. Longe da euforia criativa dos dias de Mellow Gold e Odelay, mas sem dúvida um dos melhores discos de Beck.
Beck
“Modern Guilt”
XL Recordings / Popstock
4 / 5
Para ouvir: MySpace

A poesia já morava na obra de Patti Smith quando Horses chegou aos escaparates, em 1975. O seu trabalho de palco tem oscilado entre o formato do concerto e o do serão de leitura de poemas... The Coral Sea é, contudo, o seu primeiro disco oficial neste registo. Álbum duplo, inclui duas gravações (uma de 2005, outra de 2006, ambas no Queen Elisabeth Hall, em Londres) de um mesmo texto, um poema dedicado à memória de Robert Mapplethorpe, o fotógrafo (morto em 1989) que assinou a mítica foto que vemos na capa de Horses. Elegia por um amigo cujo desaparecimento Patti Smith sentiu profundamente, The Coral Sea teve publicação como livro em 1996. No texto acompanhamos M (nada mais que Mapplethorpe) numa última viagem para ver as estrelas do Cruzeiro do Sul antes de morrer. É um texto pungente, no qual se questiona porque se apaga assim, antes do tempo, um talento como aquele. O disco dá-lhe agora corpo, na verdade da voz de Patti Smith, acompanhada em palco pela presença de Kevin Shields (dos My Bloody Valentine), que vai gerindo acontecimentos cénicos, desenhando texturas ou pequenas sugestões melódicas, sempre ciente de que é de cenário e não protagonismo que vive a sua contribuição para esta obra. A voz de Patti Smith, pausada e expressiva, conduz o evoluir das palavras. A voz é a mesma que frequentemente lê, em palco, poemas de Rimbaud ou de Pessoa (como o já fez, em Lisboa, em pouco concorrido, mas inesquecível, concerto no Pavilhão Carlos Lopes), mas aqui fala na primeira pessoa para definir um encontro poderoso com a memória de um amigo perdido. Face à anterior discografia de Patti Smith, The Coral Sea poderá parecer um momento atípico. Mas nada mais faz que, finalmente, trazer a disco outra das identidades artísticas fulcrais de uma das figuras mais marcantes da história da cultura popular.
Patti Smith & Kevin Shields
“The Coral Sea”

Pask / Compact Records
4 / 5
Para saber mais: Site oficial

Os Wire são como os gatos... Têm muitas vidas. E neste momento estão já na quarta. Surgiram em 1976, editando em 1977 o álbum Pink Flag, um clássico de referência do punk, revelando um sentido de abordagem minimalista ao som que então fazia a revolução. Procuraram depois novos estímulos e ideias, mas em 1980 separaram-se para dar largas a experiências individuais. Reuniram-se em 1985 sob claro encanto pela descoberta das electrónicas. Gravam novos discos, um deles A Bell Is A Cup... Untill It’s Struck, tão interessante quanto o fora o álbum de estria, mas frequentemente omitido (talvez por desconhecido) das listas dos grandes acontecimentos do seu tempo. Separaram-se em 1992, reagrupando-se em 1999, dessa vez com um programa de revisão da matéria dada, que os manteve juntos até 2004, gravando mais um álbum de originais. A reedição dos três álbuns “históricos” da década de 70, em 2006, abriu caminho a nova (e quarta) vida que, depois de um EP em 2007, agora nos dá um álbum no qual, contudo, não colabora o guitarrista Bruce Gilbert. O álbum chama-se Object 47, ou seja, é a 47ª entrada na discografia da banda, recorrendo a um “truque” que tinham usado já no álbum de 1979 154, número que traduzia o número de concertos dados até então. Ao contrário de Send (2003), abrasivo, tenso e intenso, Object 47 é um disco luminoso, de horizontes largos, recuperando um antigo interesse dos Wire pela exploração das electrónicas e também pela exploração de texturas. De certa maneira, o álbum (o 11º de originais do grupo) promove uma revisão de momentos, etapas e respectivas demandas estéticas mas, em lugar da nostalgia habitual nesses olhares, aposta antes na invenção de canções novas. Aqui estão ecos da sua vivência punk, pós-punk e pop. Aqui mora o melodismo que nunca abandonou uma banda sempre capaz de escrever grandes canções. Banda de vendas sempre discretas, os Wire foram todavia uma referência para várias gerações de bandas, dos Cure aos Franz Ferdinand, passando pelos Blur e muitos outros mais. Aos 32 anos de vida (intermitente, é certo), e confrontados com mais uma geração de bandas encantadas com as heranças do “seu tempo” mostram, neste Object 47, um disco bem mais sumarento que muitas das reinvenções pós-punk de loja dos 300 que temos escutado nos últimos anos.
Wire
“Object 47”

Cargo / Compact Records
4 / 5
Para ouvir: MySpace

Quando surgiu pela primeira vez em disco, em 2003, com o magnífico Quelq’un M’a Dit, era a jovem modelo que surpreendia tudo e todos ao editar um álbum de belas melodias, voz sedutora e canções bem construídas. Dois milhões e discos vendidos foram cereja sobre um bolo que não deixou ninguém indiferente. O segundo álbum, no qual optou pela língua inglesa (interpretando grandes nomes da poesia) não teve o mesmo impacte, mas musicalmente manteve firme uma postura sóbria e tranquila. Agora, que o cenário mudou, e Carla Bruni não é mais que a Primeira Dama francesa, o que dizer de um terceiro álbum que, pelo contexto, acaba por ser um dos mais mediatizados do ano? Para que não haja dúvidas, Carla Bruni começou por dar-lhe um título que não deixa segundas leituras. Chamou-lhe Carla Bruni. E é ela quem claramente habita este mundo que, pelo respeito angariado pelos dois discos anteriores, ninguém ousa afirmar que não seja já seu. Na verdade aqui não encontramos mais que um sucessor natural do seu trabalho anterior, talvez mais próximo do que o primeiro disco indiciava, de novo apostando contudo em arranjos mais elaborados, talvez ocasionalmente mais luminosos, festivos. Lúdicos, porque não? A mudança de produtor assegura esta evolução plástica, assim como o juntar à memória folk (presente desde sempre) de uma série de janelas para com a memória da canção francesa de 60, nomeadamente a obra de então de Françoise Hardy, também ela uma figura da música francesa, mas mulher do mundo pop (sobretudo atenta às heranças anglo-americanas). No novo álbum Carla Bruni canta Dylan (em inglês), um poema de Houellebecq e fecha o alinhamento com uma canção em italiano. Não repete o efeito do primeiro disco. Nem a leveza do segundo. Mas dá conta do recado. Ou seja, não desilude.
Carla Bruni
“Carla Bruni”

Naïve / EMI
3 / 5
Para ouvir: MySpace

Quantas vezes, ao longo da história, uma banda vinda de uma paragem (geográfica ou estética) menos vulgar acaba por abrir janelas para a descoberta de outros com afinidade para consigo, por vezes revelando mesmo a um público mais vasto obras e artistas com carreiras que vêem já de longe... É o que está a acontecer com o duo paulista Tetine. Formados em São Paulo (Brasil) em 1995, por Bruno Verner e Eliete Mejorado, os Tetine tinham já editado sete álbuns no Brasil quando Let You X’s Be Y’s, o seu oitavo disco, chegou ao circuito internacional. O “efeito” Cansei de Ser Sexy (que, de resto, remisturam um dos temas deste álbum) e, logo depois, do Bonde do Role, assegurou o despertar de atenções para com o som underground new wave/punk, cravejado de electrónicas e com afinidade com o baile funk que chegava de São Paulo. A cidade, que de resto tem muito interessante cena pós-punk desde inícios da década de 80 (já revisitada pela Soul Jazz na antologia The Sexual Life Of The Savages), revela aqui mais um pólo de invenção, que entretanto ganhou nova dinâmica com uma vida pendular que a banda hoje conhece, entre a sua “casa” de origem e a cidade de Londres na qual agora centrou a base de trabalho. Let Your X’s Be Y’s é um disco no qual se cruza a energia punk primordial que define a atitude do duo, com uma vontade de experimentar vários cenários, do electro a caminhos mais intensos que não escondem um interesse pela música de dança (aqui em diálogo entre heranças que vão do acid house ao baile funk), ao mesmo tempo revelando uma ética que promove uma postura com intenções arty. Os melhores instantes do disco brotam ora com Laurie Anderson (o título não esconde uma citação a um tema de Big Science) ou não muito distantes intenções pop no horizonte. Quando os ritmos sobem o grupo mostra contudo quão banal pode por vezes ser a música com ares de festa. Na soma destas duas faces do disco fica, contudo, a revelação (que o será para muitos portugueses) de mais um nome de um, Brasil pop que nada deve à MPB. E que, sublinhe-se, tem aqui disco bem mais interessante que o novo (e inconsequente) álbum das Cansei de Ser Sexy.
Tetine
“Let Your X’s Be Y’s”
Soul Jazz / Sabotage
3 / 5
Para ouvir: MySpace


Também esta semana:
Black Kids (ed. europeia), , Dead Can Dance (box set), Micah P Hinson, M Faithfull (live), The Hold Steady

Brevemente:
21 de Julho: Dennis Wislon (ed nacional), Black Affair, Primal Scream, U2 (reedições), Nine Inch Nails, Cansei de Ser Sexy, Mr Scruff, Lykke Li, Forward Russia, Alva Noto, Nine Inch Nails, Paul Weller, Billy Idol (best of)
28 de Julho: Atlas Sound, Simian Mobile Disco, Sonic Youth, NIN
4 de Agosto: Connor Oberst, David Vandervelde, Brazilian Girls, Joseph Arthur Elvis Presley (68 Comeback Special), Prodigy (reedições)

Agosto: Teddy Thompson, Durutti Column (BSO), The Faint, Stereolab, The Dandy Warhols, Lindstrom
Setembro: Brian Wilson, Giant Sand, Calexico, Okkervil River, Parenthetical Girls, The Cure, Mercury Rev, Morrissey
PS. Texto de Beck é versão editada de crítica publicada no suplemento IN da revista NS