Já repararam como quase todos os anúncios de automóveis prometem aquilo que, por princípio, a simples compra de um veículo de quatro rodas não pode garantir? Que é como quem diz: a ausência dos outros automóveis, estradas abertas, limpas e redentoras [em cima: foto de Georg Fischer, para a Porsche — clickar p/ ver maior]. Na maior parte dos casos, a publicidade que coloca em cena problemas de trânsito não é de automóveis, mas... seguros! Ou como a utopia e o pragmatismo, conforme as ocasiões, são ambos vendáveis.
Não sejamos moralistas. Não se trata de recusar o imenso fascínio — consumista e imaginário, sensual e sexual — associado a muitas formas de representação dos automóveis e, como é óbvio, não apenas na publicidade (há, por exemplo, toda uma mística cinéfila ligada ao automóvel). Trata-se, isso sim, de sublinhar uma evidência em que pensamos pouco: a de que a persistência do automóvel na galeria de fetiches da nossa contemporaneidade apenas é possível a partir de um recalcamento de todos os impasses e tragédias com que circulamos — e escusado será acrescentar que a actual crise dos combustíveis multiplica a gravidade da situação e também o fervor comercial e industrial daquele recalcamento.
A propósito, vale a pena ver uma pequena obra-prima de celebração desse carácter ideal e idealizado do automóvel: é um anúncio da Honda que, em 2 minutos, impõe o automóvel como triunfo exuberante de uma pura abstracção humana — produzido em 2003, este anúncio é um claro sucedâneo de Der Lauf der Ding / The Way Things Go (1987), dos suíços Peter Fischli e David Weiss, célebre curta-metragem de 30 minutos elaborada a partir de um princípio de associação e inter-acção de objectos do quotidiano.