sexta-feira, junho 06, 2008

Muitos vestidos, pouco cinema...

"Da-televisão-para-o-cinema" — eis a actual fórmula de... insucesso. Longe vão os dias em que alguém como David Lynch se preocupava em estabelecer uma relação inteligente e realmente criativa com as referências televisivas (lembremos Twin Peaks, claro). E mais para trás ainda ficaram as experiências "hitchcockianas" em televisão. Este texto sobre Sexo e a Cidade foi publicado no Diário de Notícias (5 Junho), com o título 'Pouco cinema...'.

Tempos houve em que o cinema alimentava a televisão e a televisão correspondia de forma criativa, funcionando como uma espécie de laboratório de ensaios das linguagens audiovisuais. Por exemplo, no período 1955-65, um cineasta tão visceral como Hitchcock produziu (e, por vezes, realizou) a série Alfred Hitchcock Presents, um caso modelar de contaminação dos espaços televisivos por modelos provenientes do classicismo de Hollywood.
Agora, face a um objecto como Sexo e a Cidade, verificamos que tal relação não só se alterou, como está muitíssimo mais pobre. Dir-se-ia que “cinema” e “televisão” jogam um jogo de mútuo parasitismo em que a única coisa que realmente conta é a reprodução de uma determinada imagem de marca. O filme Sexo e a Cidade não passa disso: uma boa ideia de marketing e, para além disso, um deserto de ideias... A ponto de estarmos perante aquilo que, na prática, corresponde a uma mera colagem de dois episódios da série (aliás, três, já que a duração do filme se aproxima das duas horas e meia).
O efeito é tanto mais desconcertante quanto a futilidade dramática do empreendimento nem sequer consegue integrar as marcas da grande herança melodramática americana. Daí esta constatação absurda, mas esclarecedora: qualquer melodrama de George Cukor ou Vincente Minnelli, além de infinitamente mais rico no plano estético, retrata também o universo feminino com uma intensidade e uma ousadia que nada têm a ver com esta visão asséptica que agora nos propõem.
O problema, como é óbvio, está na origem, no simplismo ideológico da própria série. De facto, Sexo e a Cidade foi-se cristalizando como uma espécie de digest puritano de todos os feminismos, sustentado por um discurso pueril sobre o sexo como factor de “libertação”, na melhor das hipóteses ao nível do imaginário de um corrente anúncio de perfume. A esse propósito, veja-se o cartaz, aliás muito sedutor. É sintomático que o mais interessante do filme sejam os vestidos que as protagonistas vão mudando, cena sim, cena sim...