Por vezes, há imagens que têm o poder de condensar — e, mais do que isso, sugerir de forma elegante — as coordenadas de um determinado momento histórico, de um lugar.
Aqui, por exemplo, num filme da competição. Uma das personagens de 24 City, de Jia Zhang Ke, estaciona o seu precioso automóvel (ela comprou-o para se poder apresentar "melhor" nas suas relações laborais com outras mulheres) face a um parque habitacional em construção. Chama-se o empreendimento "24 City" e está a desenvolver-se na imensa área que, ao longo de muitas convulsões históricas e politicas, pertenceu a uma fábrica (n. de código: 420) ao serviço do exército chinês. Jia Zhang Ke (que conhecemos de vários títulos, incluindo Natureza Morta) filma esse processo num tom de documentário "romanceado" que confirma a vitalidade de uma escrita em permanente sintonia com as convulsões do seu próprio país — assistimos a uma história colectiva, mas sempre através das singularidades dos destinos individuais.
Algo de semelhante se poderá dizer a propósito de Je Veux Voir [foto em baixo], de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (secção "Un Certain Regard"). Neste caso, filme e personagens empreendem uma viagem muito concreta: nas paisagens devastadas do Líbano, o actor libanês Rabih Mroue serve de guia à actriz francesa Catherine Deneuve (ambos se apresentam com a sua própria identidade). Trata-se, por assim dizer, de reabrir os olhos para alem da formatação televisiva. A expressão do título — "Eu quero ver" — é a primeira frase que Deneuve diz no filme. E o seu programa narrativo, porventura demasiado idealista, é apenas esse: fazer-nos participar de uma viagem breve, mas envolvente, para ver, para querer ver as marcas de destruição interior de um país. É uma espécie de documentário "anti-reportagem" e, no seu didactismo, essa pequena diferença merece ser sublinhada.