Ontem, dia 5 de Abril de 2008, passaram 100 anos sobre a data de nascimento de Bette Davis (falecida a 6 de Outubro de 1989) — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'Além das leis do glamour'.
Lauren Bacall, não propriamente um modelo de imodéstia, mas por certo uma mulher de olhar acutilante, abre o seu célebre livro autobiográfico (By Myself, ed. Jonathan Cape, 1979) citando os actores que, nos tempos do liceu, mais admirava: Leslie Howard e Bette Davis. Sobre ele, confessa a sua paixão de adolescência, lembrando que acabaria por nunca o conhecer. Sobre ela, escreve estas palavras luminosas: “Aos 15 anos, era o meu ideal de perfeição: excelente actriz, coragem dramática, assombramento trágico e inteligência sarcástica.” Mais ainda: para ela, a descoberta de Bette Davis é indissociável de algumas memórias pessoais muito particulares; assim, a estrela de À Beira do Abismo (1946) recorda que viu os seus primeiros filmes de Bette Davis — Jezebel, a Insubmissa (1938), Vitória Negra (1939) e A Velha Ama (1939) — no balcão de um cinema onde, metodicamente, se entregava a uma actividade interdita em casa: fumar.
Para além da sua magnífica versatilidade, Bette Davis cedo se impôs através desse estatuto de modelo ideal de actriz. Ao contrário de outras figuras lendárias do classicismo americano (a começar pelos casos óbvios de Errol Flynn ou Marilyn Monroe), sobre ela nunca se começa pela eventual oposição entre a “estrela” e a “actriz”. Pelo contrário: ela é a actriz vintage de Hollywood; a condição de estrela está longe de lhe ser estranha mas, no limite, é irrelevante para o seu impacto e o seu continuado fascínio.
De forma sugestiva, talvez se possa dizer que, quando se revela na produção americana do começo dos anos 30, Bette Davis surge como a anti-Jean Harlow. Figura inevitavelmente trágica, falecida em 1937 com apenas 26 anos de idade, Harlow impusera-se como modelo da estrela que se confunde com todas as formas de glamour e que, por assim dizer, apenas existe através delas. Apesar de tão breve, a sua passagem pelos filmes não deixa de reflectir uma questão muito específica das actrizes e actores da época (que contribuiu de modo cruel para o fim de muitas carreiras). Ou seja, para muitos desses actores e actrizes, foi problemática a afirmação no interior de uma indústria transfigurada pelas técnicas do cinema sonoro e pela modificação acelerada dos modos típicos de representação nos filmes mudos.
Bette Davis é exterior a tudo isso. A questão do glamour é, para ela, um problema inexistente. Quando arrebata o primeiro Óscar, com Dangerous/Mulher Perigosa (1935), o seu triunfo é indissociável da intensidade dramática de uma complexa interpretação (uma mulher que provoca um acidente que torna o marido um inválido e, depois, tenta conquistar o seu perdão), interpretação que jogava de forma muito directa, e também muito perversa, com o envolvimento moral do espectador. Além disso, Bette Davis emerge como uma profissional que não tem que se libertar nem, por assim dizer, pagar um resgate pelos tempos do cinema mudo. De facto, ela vinha directamente do mundo do teatro novaiorquino, passara pela Broadway e, à partida, os seus valores de representação pouco ou nada tinham a ver com as leis do “estrelato” à maneira de Hollywood.
Quando olhamos para a lista de mais de uma centena de títulos da filmografia da actriz, não deixa de ser impressionante reconhecer como a sua aura se manteve intacta ao longo de várias décadas, mesmo se é verdade que ela já não se pode considerar uma protagonista das muitas transformações por que passou a produção americana (e europeia) ao longo da década de 60. Embora tenha trabalhado até finais dos anos 80, talvez que o papel que encerra, simbolicamente, o seu invulgar contributo artístico esteja num filme muito popular lançado em 1978: Morte no Nilo, baseado em Agatha Christie, uma realização de John Guillermin cujo elenco combinava nomes de vários quadrantes e gerações, incluindo Peter Ustinov, David Niven, Maggie Smith, Mia Farrow e Jane Birkin.
Falar de uma herança de Bette Davis é, talvez, inevitável. A sua capacidade de relação com o olhar da câmara, feita de um misto de sedução e distanciamento, decorre de um know how cuja vitalidade se mantém e que, evidentemente, as figuras digitais do nosso presente (e futuro) não possuem nem podem possuir. E não é fácil encontrar alguém que possua a capacidade de resistência (às convulsões da indústria e ao efémero das modas) de que Bette Davis deu mostras. Um exemplo possível e, mais do que isso, legítimo será o de uma outra grande senhora de Hollywood: Meryl Streep, já com mais de 30 anos de carreira e uma pluralidade de papéis que está longe de parecer esgotada.
Resta lembrar que o primeiro e fundamental trunfo expressivo de Bette Davis, isto é, o seu olhar, já pertence ao imaginário popular (e especificamente pop) desde 1981. Foi nesse ano que Kim Carnes lançou essa canção de sucesso que se chama, muito simplesmente, Bette Davis Eyes: “All the boys think she’s a spy / She’s got Bette Davis eyes” — o teledisco, dirigido por Russell Mulcahy, era assim:
Lauren Bacall, não propriamente um modelo de imodéstia, mas por certo uma mulher de olhar acutilante, abre o seu célebre livro autobiográfico (By Myself, ed. Jonathan Cape, 1979) citando os actores que, nos tempos do liceu, mais admirava: Leslie Howard e Bette Davis. Sobre ele, confessa a sua paixão de adolescência, lembrando que acabaria por nunca o conhecer. Sobre ela, escreve estas palavras luminosas: “Aos 15 anos, era o meu ideal de perfeição: excelente actriz, coragem dramática, assombramento trágico e inteligência sarcástica.” Mais ainda: para ela, a descoberta de Bette Davis é indissociável de algumas memórias pessoais muito particulares; assim, a estrela de À Beira do Abismo (1946) recorda que viu os seus primeiros filmes de Bette Davis — Jezebel, a Insubmissa (1938), Vitória Negra (1939) e A Velha Ama (1939) — no balcão de um cinema onde, metodicamente, se entregava a uma actividade interdita em casa: fumar.
Para além da sua magnífica versatilidade, Bette Davis cedo se impôs através desse estatuto de modelo ideal de actriz. Ao contrário de outras figuras lendárias do classicismo americano (a começar pelos casos óbvios de Errol Flynn ou Marilyn Monroe), sobre ela nunca se começa pela eventual oposição entre a “estrela” e a “actriz”. Pelo contrário: ela é a actriz vintage de Hollywood; a condição de estrela está longe de lhe ser estranha mas, no limite, é irrelevante para o seu impacto e o seu continuado fascínio.
De forma sugestiva, talvez se possa dizer que, quando se revela na produção americana do começo dos anos 30, Bette Davis surge como a anti-Jean Harlow. Figura inevitavelmente trágica, falecida em 1937 com apenas 26 anos de idade, Harlow impusera-se como modelo da estrela que se confunde com todas as formas de glamour e que, por assim dizer, apenas existe através delas. Apesar de tão breve, a sua passagem pelos filmes não deixa de reflectir uma questão muito específica das actrizes e actores da época (que contribuiu de modo cruel para o fim de muitas carreiras). Ou seja, para muitos desses actores e actrizes, foi problemática a afirmação no interior de uma indústria transfigurada pelas técnicas do cinema sonoro e pela modificação acelerada dos modos típicos de representação nos filmes mudos.
Bette Davis é exterior a tudo isso. A questão do glamour é, para ela, um problema inexistente. Quando arrebata o primeiro Óscar, com Dangerous/Mulher Perigosa (1935), o seu triunfo é indissociável da intensidade dramática de uma complexa interpretação (uma mulher que provoca um acidente que torna o marido um inválido e, depois, tenta conquistar o seu perdão), interpretação que jogava de forma muito directa, e também muito perversa, com o envolvimento moral do espectador. Além disso, Bette Davis emerge como uma profissional que não tem que se libertar nem, por assim dizer, pagar um resgate pelos tempos do cinema mudo. De facto, ela vinha directamente do mundo do teatro novaiorquino, passara pela Broadway e, à partida, os seus valores de representação pouco ou nada tinham a ver com as leis do “estrelato” à maneira de Hollywood.
Quando olhamos para a lista de mais de uma centena de títulos da filmografia da actriz, não deixa de ser impressionante reconhecer como a sua aura se manteve intacta ao longo de várias décadas, mesmo se é verdade que ela já não se pode considerar uma protagonista das muitas transformações por que passou a produção americana (e europeia) ao longo da década de 60. Embora tenha trabalhado até finais dos anos 80, talvez que o papel que encerra, simbolicamente, o seu invulgar contributo artístico esteja num filme muito popular lançado em 1978: Morte no Nilo, baseado em Agatha Christie, uma realização de John Guillermin cujo elenco combinava nomes de vários quadrantes e gerações, incluindo Peter Ustinov, David Niven, Maggie Smith, Mia Farrow e Jane Birkin.
Falar de uma herança de Bette Davis é, talvez, inevitável. A sua capacidade de relação com o olhar da câmara, feita de um misto de sedução e distanciamento, decorre de um know how cuja vitalidade se mantém e que, evidentemente, as figuras digitais do nosso presente (e futuro) não possuem nem podem possuir. E não é fácil encontrar alguém que possua a capacidade de resistência (às convulsões da indústria e ao efémero das modas) de que Bette Davis deu mostras. Um exemplo possível e, mais do que isso, legítimo será o de uma outra grande senhora de Hollywood: Meryl Streep, já com mais de 30 anos de carreira e uma pluralidade de papéis que está longe de parecer esgotada.
Resta lembrar que o primeiro e fundamental trunfo expressivo de Bette Davis, isto é, o seu olhar, já pertence ao imaginário popular (e especificamente pop) desde 1981. Foi nesse ano que Kim Carnes lançou essa canção de sucesso que se chama, muito simplesmente, Bette Davis Eyes: “All the boys think she’s a spy / She’s got Bette Davis eyes” — o teledisco, dirigido por Russell Mulcahy, era assim: