domingo, fevereiro 03, 2008
Um retrato de uma época
A Missa (Mass, no original), de Leonard Bernstein (1918-1990), nasceu para surpresa de tudo e todos quando, em 1971, o John F. Kennedy Center For Performing Arts (em concreto, Jacqueline Kennedy) lhe encomendou uma obra para ser estreada na noite da sua inauguração, não especificando junto do compositor (e também reconhecido maestro) que tipo de peça pretendia. Bernstein tinha há muito uma admiração por Kennedy e, de resto, havia-lhe dedicado a sua terceira sinfonia, na sequência do assasinato do Presidente em Dallas, em 1963. De formação pessoal judaica, Bernstein optava pela composição de uma missa (um dos géneros mais importantes da tradição musical na velha Europa cristã) não apenas para assinalar o facto de Kennedy ter sido o Presidente católico apostólico romano dos EUA, mas também porque, nem inícios de 70, a Igreja vivia tempos de mudança (da emergência da teologia da libertação à revisão de velhos dogmas e rituais), que assim fazia questão de sublinhar. A Missa, de Bernstein, mais que apenas uma obra religiosa, é uma obra política, servindo a forma musical (e a sua carga histórica) como catalisador para uma demonstração do poder unificador das artes em volta da memória de uma figura e a crença uma ideia. Na sua Missa, Bernstein cruza a exploração concreta de questões do foro religioso (que abordara já, tanto na já referida Terceira Sinfonia e nos Chichester Psalms), com uma reflexão sobre as concretas condições sociais da vida do dia-a-dia, que por si fora já abordada na música de West Side Story. Os dois mundos, não apenas temáticos, mas igualmente musicais (juntando aqui, claramente, tradições da música erudita a marcas da cultura popular, nomeadamente a herança do musical), juntam-se numa obra absolutamente espantosa, que apela a uma necessidade de espiritualidade. Musical, política e socialmente, a Missa de Bernstein é um retrato do seu tempo. Teatralizada, cruza linguagens, sublinhando também na sua interpretação a noção de diversidade que a própria música em si transporta. A nova gravação, dirigida por Kent Nagano, abre novas visões sobre uma obra até aqui essencialmente conhecida em gravações dirigidas pelo próprio Bernstein. Trabalho notável de Nagano, acompanhado pela Sinfónica de Berlim, contando ainda com solistas do Pacific Mozart Ensemble e o Rundfunkor Berlin. Edição em CD duplo pela Harmonia Mundi.