sábado, fevereiro 02, 2008

Estrada fora

Na raiz de O Lado Selvagem, o mais recente filme de Sean Penn, está um livro com uma história real: a do jovem Christopher McCandless que, terminado o curso universitário, abandonou tudo e todos, iniciando uma longa viagem sem destino aparente que o conduziria à morte, solitária, no Alasca, aos 24 anos de idade. O livro, assinado por Jon Krakauer, jornalista e alpinista (com trabalhos publicados na Geo e National Geographic), acaba de conhecer edição entre nós pela Editorial Presença.Como o filme, o livro relata-nos a aventura, estrada fora, de Christopher McCandless. Filho de uma família de classe média da Virgínia, terminou o curso de História e Antropologia em 1990 com boas notas. Fisicamente saudável e ávido leitor, encontrara entretanto sentido para a sua vida nas palavras de escritores como Jack London, Lev Tolstoi e Henry David Thoreau. Tomou algumas das suas sugestões como quase uma fé, alimentando uma progressiva vontade de ruptura com as regras da sociedade, nas quais criticava atitudes que descrevia como materialistas e vazias. Os livros inspiraram--lhe uma fuga rumo a um idílio de contemplação solitária. E, terminado o curso, partiu... Doou o dinheiro que lhe restava na conta à Oxfam e seguiu caminho. Primeiro no seu carro. E, depois de uma avaria, a pé, pedindo boleia. Da Geórgia até à Califórnia. Os pais contrataram detectives, mas nenhum localizou Christopher. Viveu ocasionalmente entre comunidades migrantes ou de hippies, aceitou trabalhos de ocasião. Fazia amigos com facilidade e alimentava um sonho: viver, só, no Alasca.

Em Fevereiro de 1992 compra mantimentos e prepara-se para a grande viagem. Chega a Fairbanks a 27 de Abril e, daí, procura boleia que o leve ao sopé das montanhas. Um camionista deixa-o na base de um trilho, que segue, a pé, até encontrar um autocarro abandonado, abrigo a caçadores no Verão. Com um saco de cinco quilos de arroz, um livro sobre plantas selvagens, uma espingarda (que lhe permitiu pequena caça ocasional) e vontade em vencer os desafios da natureza, Christopher McCandless - conhecido na sua vida nómada como Alex) - regista, sistematicamente, num diário, tudo o que faz, observa e sente. A 2 de Junho acaba de ler A Felicidade Conjugal, de Tolstoi. E conclui: "A única felicidade certa na vida é viver para os outros." Resolve regressar. Mas o desespero instala-se quando repara que o rio que passara a pé quando a neve cobria a região era, afinal, uma torrente rápida e perigosa. Inultrapassável. "Calamidade", escreve... Progressivamente mais fraco, escreve menos. Regista as últimas palavras a 12 de Agosto. Seis dias depois, o seu corpo, com apenas 30 quilos, é encontrado dentro do saco- -cama, no autocarro que habitou, solitário, entre as montanhas.

Jon Krakauer, que assinou em 1992, na Outside, um primeiro artigo sobre Christopher McCandless, caracteriza-o, n'O Lado Selvagem quer através de os relatos dos que o conheceram na estrada quer nas palavras que deixou nos seus registos. E assim relata uma aventura que mostra como a intensidade da crença de McCandless foi inversamente proporcional à sua real preparação para a tão sonhada odisseia. O filme segue as pistas do livro mas aproveita, como o próprio Christopher McCandless o fez, para fugir para espaços maiores de uma outra América que hoje pouco mora no cinema. Em ambos, a reflexão implícita sobre a demanda de um idealista que tinha tanto de ingénuo como de rebelde e que pagou com a vida real uma interpretação algo excessiva de palavras de ficção.
P.S. Versão editada e alterada de texto originalmente publicado no DN