domingo, janeiro 20, 2008

A propósito de "Expiação", de Joe Wright

Imagem de Histoire(s) du Cinéma (1988-1998), de Jean-Luc Godard

São cada vez menos os espaços mediáticos onde possamos com-preender as clivagens que, realmente, marcam a intervenção crítica no espaço do cinema. As excepções apenas confirmam a regra. Motivos para que isso (não) aconteça:
1 - o desinvestimento dos jornais no campo do pensamento crítico.
2 - o triunfo de uma lógica televisiva que reduz o cinema a uma colecção de anedotas pessoais (os "famosos") ou curiosidades técnicas (os "efeitos especiais").
3 - a fulanização terrorista da esmagadora maioria das intervenções na Internet.
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Será, então, que o leitor/consumidor/espectador ainda pode encontrar alguns sinais daquilo que pode ser a vivacidade, o contraste e as contradições do pensamento crítico? A primeira resposta terá que ser: não é fácil.
Porquê? Porque, além de tudo o mais, persiste a estupidez triunfante desse discurso de vocação policial que gosta de reduzir a "crítica" a um rebanho de intelectuais ressentidos. Segundo tal discurso, não só não importa o que "eles" dizem, como dizem todos o "mesmo" — no campo do cinema português, essa é mesmo uma das razões principais (a meu ver: a razão principal) para que, mais de três décadas depois do 25 de Abril, continue a não existir qualquer operacionalidade política resultante de eventuais es-tratégias comuns para defender o cinema contra a normalização galopante da televisão.
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Pontualmente, quem quiser prestar um pouco de atenção aos sinais que o rodeiam, pode compreender que, de facto, os críticos são personalidades públicas com diferenças tão marcadas — e tão marcantes — como em qualquer outro espaço de opinião. Mais do que isso, na melhor das hipóteses, tais diferenças são ex-tremamente estimulantes: permitem entender como o fluir do pensamento crítico se laça e entrelaça com as próprias convulsões da produção cinematográfica contemporânea.
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Um bom exemplo, actualmen-te disponível, é o de Expiação (Atonement), de Joe Wright, baseado no romance homónimo de Ian McEwan. A sua distinção com o Globo de Ouro de melhor filme (drama) de 2007 não pode deixar de ter resso-nâncias simbólicas muito for-tes — trata-se, de facto, de um prémio com uma chancela crítica muito mediática (a da Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood) e, nessa medida, surge automaticamente exposto através de um rótulo de "qualidade" que a informação de tipo televisivo, sempre carente de generalizações, ecoa até à histeria.
Ora, justamente, vale a pena sublinhar que Expiação se coloca numa zona em que suscita uma significativa — e, a meu ver, muito interessante — dicotomia crítica. Não quero simplificar os discursos dos outros e, por isso, lembro que este raciocínio pode apagar as nuances mais interessantes desses discursos. Em todo o caso, creio que é legítimo condensar a questão, definindo assim os dados dessa dicotomia:
A) - por um lado, deparamos com a celebração do revivalismo de Expiação, concretamente na sua revalorização dos códigos do melodrama clássico.
B) - por outro lado, o filme de Joe Wright é visto como um reinvestimento redutor desses códigos, sempre contaminado por um exibicionismo formalista que, em última instância, o aproxima de algumas retóricas visuais e dramatúrgicas da televisão (e, em particular, como é óbvio, de algumas séries de origem britânica).
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Sou dos que tendem mais para a hipótese B, mesmo não deixando de reconhecer a pertinência e a sedução da hipótese A. Sobretudo — e é esse o ponto que aqui gostaria de deixar expresso —, vejo no trabalho de Joe Wright o resultado de uma visão do cinema que nasce dos escombros do pós-modernismo e que, em última instância, favorece uma prática me-ramente instrumental do trabalho cine-matográfico.
Assim, o cinema é entendido menos como um espectáculo (grandioso OU intimista, não é essa a questão — porventura grandioso E intimista) e mais como uma ferramenta que nos traz uma espécie de su-plemento "estético".
No limite, Expiação é um filme que nos dispensa dos dramas das personagens interpretadas por Keira Knightley e James McAvoy (e não está em causa a riqueza de detalhes que ambos sabem acumular na superfície dos seus corpos), para se dar a ver como uma colecção de artifícios formais que sinalizariam a superioridade "artística" do seu olhar.
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Em termos críticos — mas sobretudo no plano do consumo possível de qualquer espectador (desde logo, através do DVD) —, poderá ser útil lembrar que o trabalho de Joe Wright possui como inevitável referência fantsmática a herança de um cineasta como David Lean (1908-1991). E valerá a pena confrontar e avaliar diferenças, por exemplo vendo ou revendo A Filha de Ryan (1970), tradicionalmente apontado como um dos melodramas "menores" do autor de Lawrence da Arábia (1962). Será interessante, sobretudo, reflectir sobre algumas diferenças:
I) - para Wright, a natureza funciona como uma mais-valia decorativa da existência das personagens; no caso de Lean, a natureza é um elemento orgânico da narrativa, isto é, participa da dramaturgia.
II) - o pano de fundo histórico de Expiação "racionaliza" a história dos protagonistas; em A Filha de Ryan, a história colectiva funciona como primeiro fantasma de todo e qualquer impulso ou desejo.
III) - para Expiação, o dispositivo formal é um acréscimo que vem "valorizar" o conteúdo romanesco; em A Filha de Ryan, a forma não se distingue dos conteúdos — é o primeiro conteúdo.