Texto publicado no Diário de Notícias (12 Nov.), com o título 'Que fazer com a herança de Salazar?' >>> Há dias, a actualidade voltou a ser abalada pelo nome de António de Oliveira Salazar (1889-1970). A URAP (União dos Resistentes Antifascistas Portugueses) entregou a Jaime Gama, presidente da Assembleia da República, uma petição com 16 mil assinaturas contra a criação de um “Museu Salazar” em Santa Comba Dão. Na sua dimensão mais simples, isto significa que o património de Salazar continua a ter uma existência instável e contraditória no interior da sociedade portuguesa. Que fazer com a sua herança?
Provavelmente, o acontecimento deve ser encarado como facto pontual, apenas sintomático de um drama muito mais fundo. A saber: a existência de um sistema de ensino (da escola à família, passando pelas instituições sociais) que não tem tido capacidade para promover uma visão directa e realista do século XX português. A complexidade desta conjuntura poderá ter como contraprova o patético concurso da RTP1 sobre os “Grandes Portugueses” que, há alguns meses, impôs ao país um debate tão espalhafatoso quanto maniqueísta.
Porventura o mais incómodo na dificuldade de lidar com o nosso passado (e, em particular, com as suas imagens) decorre das raízes ideológicas deste combate antifascista. É bem verdade que, face à crise de identidade das esquerdas, a revalorização do discurso antifascista é um factor actualíssimo do debate político; é essa, aliás, uma tese nuclear de Ce Grand Cadavre à la Renverse, o mais recente livro do filósofo francês Bernard-Henri Lévy (que aqui referi em crónica de 22 de Outubro). Mas não é menos verdade que, muitas vezes, esse mesmo combate antifascista recalca as componentes comunistas dos seus enunciados.
Não baralhemos os dados. Não se está aqui a negar o papel fulcral de muitos comunistas na resistência à ditadura salazarista, nem se pretende insinuar que o Partido Comunista seja uma entidade estranha à vida democrática portuguesa. Trata-se, isso sim, de não escamotear duas formas de perversão ideológica: a primeira decorre do facto de, quase sempre, este “discurso antifascista” ser cego e surdo à pesadíssima herança da história do próprio comunismo, com o seu imenso rol de crimes e os seus milhões de vítimas (a história ensina-nos, aliás, que algumas direitas europeias sempre tiraram partido desse recalcamento para tentar escamotear a monstruosidade do nazismo); a segunda fundamenta-se numa ilusão perigosa, tendencialmente totalitária: a de que existe um ponto de vista “puro” a partir do qual é possível fazer a história dos fascismos.
Essa “pureza perigosa” (para retomar o título de outro livro de Lévy) continua a favorecer uma crença completamente equívoca: a de que a esquerda possuiria uma espécie de direito “natural” na apropriação da memória dos totalitarismos. Ora, o que está em jogo é justamente o contrário. A história de algo como o regime do Estado Novo não é propriedade de nenhuma ideologia ou força política: Salazar não é o “outro” da nossa memória colectiva, mas uma entidade que lhe pertence de forma visceral. Não nas opções ideológicas, não na prática política, mas no plano existencial, a verdade mais difícil de enfrentar é esta: todos fomos salazaristas.
Provavelmente, o acontecimento deve ser encarado como facto pontual, apenas sintomático de um drama muito mais fundo. A saber: a existência de um sistema de ensino (da escola à família, passando pelas instituições sociais) que não tem tido capacidade para promover uma visão directa e realista do século XX português. A complexidade desta conjuntura poderá ter como contraprova o patético concurso da RTP1 sobre os “Grandes Portugueses” que, há alguns meses, impôs ao país um debate tão espalhafatoso quanto maniqueísta.
Porventura o mais incómodo na dificuldade de lidar com o nosso passado (e, em particular, com as suas imagens) decorre das raízes ideológicas deste combate antifascista. É bem verdade que, face à crise de identidade das esquerdas, a revalorização do discurso antifascista é um factor actualíssimo do debate político; é essa, aliás, uma tese nuclear de Ce Grand Cadavre à la Renverse, o mais recente livro do filósofo francês Bernard-Henri Lévy (que aqui referi em crónica de 22 de Outubro). Mas não é menos verdade que, muitas vezes, esse mesmo combate antifascista recalca as componentes comunistas dos seus enunciados.
Não baralhemos os dados. Não se está aqui a negar o papel fulcral de muitos comunistas na resistência à ditadura salazarista, nem se pretende insinuar que o Partido Comunista seja uma entidade estranha à vida democrática portuguesa. Trata-se, isso sim, de não escamotear duas formas de perversão ideológica: a primeira decorre do facto de, quase sempre, este “discurso antifascista” ser cego e surdo à pesadíssima herança da história do próprio comunismo, com o seu imenso rol de crimes e os seus milhões de vítimas (a história ensina-nos, aliás, que algumas direitas europeias sempre tiraram partido desse recalcamento para tentar escamotear a monstruosidade do nazismo); a segunda fundamenta-se numa ilusão perigosa, tendencialmente totalitária: a de que existe um ponto de vista “puro” a partir do qual é possível fazer a história dos fascismos.
Essa “pureza perigosa” (para retomar o título de outro livro de Lévy) continua a favorecer uma crença completamente equívoca: a de que a esquerda possuiria uma espécie de direito “natural” na apropriação da memória dos totalitarismos. Ora, o que está em jogo é justamente o contrário. A história de algo como o regime do Estado Novo não é propriedade de nenhuma ideologia ou força política: Salazar não é o “outro” da nossa memória colectiva, mas uma entidade que lhe pertence de forma visceral. Não nas opções ideológicas, não na prática política, mas no plano existencial, a verdade mais difícil de enfrentar é esta: todos fomos salazaristas.