Texto publicado no Diário de Notícias (30 Set.), com o título 'Do cinematógrafo ao triunfo de Marlene' >>> Não tenhamos ilusões: mais do que nunca, a preservação da memória audiovisual tornou-se uma das questões fulcrais da vida cultural. Não por mera motivação nostálgica, mas porque um público desprovido de memória se torna uma entidade amorfa, vulnerável à banalidade pornográfica de “apanhados”, telenovelas e reality shows.
Escusado será dizer que a batalha por essa preservação adquire contornos muito especiais no campo específico do cinema. Desde logo porque o cinema desapareceu dos horários nobres das televisões, em muitos casos transformado em produto “clandestino” (a regra que faz com que os filmes para adultos passem, às duas ou três da manhã, com uma bolinha vermelha é um desses gloriosos disparates que apenas serve para aquietar o sentimento de culpa de legisladores completamente desligados do mundo em que vivem). Mas também porque o cinema tende a ser apresentado como coisa “patusca” e “pitoresca”, sobretudo se estivermos perante filmes mais antigos, eventualmente do período mudo.
Enfim, nem tudo está perdido. O sucesso de muitos títulos clássicos no mercado do DVD traduz uma disponibilidade dos consumidores que, além do mais, em termos estritamente comerciais, seria um erro menosprezar. No mundo dos livros, séries como a que a editora Taschen tem dedicado à produção cinematográfica de várias décadas (com coordenação editorial de Jürgen Müller) exemplificam uma realidade muito simples: o trabalho de recolha e análise das memórias dos filmes tem tanto de arqueologia estética e temática como de (re)abertura para o presente do cinema.
Acaba de sair o volume dedicado à década de 20 (já existiam edições referentes às décadas de 30 a 90). Prolongando-se até ao ano de 1930, Movies of the 20s apresenta na capa uma imagem triunfante desse tempo em que o cinema refazia as matrizes do mudo, inventando novos modelos de narrativa e espectáculo: Marlene Dietrich, em O Anjo Azul (1930), de Josef von Sternberg, emerge como a encarnação perfeita da estrela como símbolo universal do próprio cinema.
Movies of the 20s excede, alias, o espaço estrito da época, uma vez que o volume recua até às origens do cinematográfo. O primeiro filme antologiado é mesmo o lendário L’Arrivée d’un Train à La Ciotat (1895), com que os irmãos Lumière deslumbraram (e assustaram) os espectadores da primeira sessão pública de cinema. Encontramos, depois, figuras emblemáticas como Douglas Fairbanks em Os Três Mosqueteiros (1921), Charlie Chaplin em A Quimera do Ouro (1925) ou Lillian Gish em O Vento (1928). Por todos perpassa o sentimento de que o cinema rapidamente soube construir o seu universo próprio, transcendendo as raízes fotográficas, pictóricas ou teatrais que, inevitavelmente, marcaram o seu começo. Esta é uma história de memórias realmente vivas.
quinta-feira, outubro 04, 2007
Memórias do cinema primitivo
Lillian Gish, em O Vento (1928), de Victor Sjöström