quinta-feira, outubro 04, 2007

Discos da semana, 1 de Outubro

Editado há cinco anos, o soberbo Martes revelava no mexicano Fernando Corona (através do seu projecto Murcof) uma das mais espantosas visões que a música electrónica da década 00 nos deu já. O disco aceitava a sugestão dos espaços largos, desertos, ventosos e despovoados, da paisagem em volta de Tijuana para desenhar um discreto mundo feito de filigranas de pedaços de melodia e micro beats. Ecos de instrumentos reais, texturas digitais e milimétrica geometria de acontecimentos juntavam-se num álbum mais feito de murmúrios que de grandes acontecimentos, todavia incrivelmente capaz de construir uma sólida visão de um universo muito peculiar. Quase poderia ser alternativa a Arvo Part na banda sonora de Gerry, de Gus Van Sant... Dois anos depois de Remembranza, um sucessor interessante, mas talvez demasiado cauteloso, Cosmos volta a colocar Fernando Corona no mapa dos mais entusiasmantes acontecimentos. O título do álbum sugere que, da paisagem desértica em seu redor (eventual ponto de partida para Martes), a inspiração veio mais de cima, e certamente de noite. Hoje residente em Barcelona, e reconhecido pelo seu trabalho nos últimos cinco anos, Fernando Corona revela, com segurança, ambição maior num disco mais ousado, mais elaborado, todavia ainda fruto de uma linguagem que sabe como usar camadas de texturas como esconderijo para acontecimentos melodistas feitos de notas longas, contemplativas, que brotam do escuro quando a noite cai. A música de Cosmos sugere-nos a grandiosidade do espaço sideral, visita mundos, sugere espanto, vastidão, encanto, silêncio, esperas e ocasionais revelações e descobertas. Umas vezes sugere Debussy, noutras Ligeti... Há ainda uma arquitectura de acontecimentos microscópicos e geométricos a suportar o espaço que Cosmos visita. Porém, na recta final do álbum, como que a assumir um mergulho pelo desconhecido (domínio de que, talvez num próximo disco cheguem notícias) Corona liberta-se mais ainda dos “constrangimentos” da forma e aceita um sentido de liberdade, de deriva consentida, que, mais ainda que nas sugestões melodistas de Martes, denunciam um flirt com a música contemporânea. Em busca, no desconhecido, a música ganha um outro fôlego e remata, na perfeição, um disco absolutamente deslumbrante. Nunca a música olhou o cosmos assim...
Murcof
“Cosmos”
Leaf / Flur
5/5
Para ouvir: site oficial
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Isto sim, é um regresso. E que regresso! Há 15 anos que Kevin Ayers se remetera ao silêncio, mudando a sua residência para o Sul de França. A sua presença mítica na história da música de 60 e 70, determinante que então foi o papel desempenhado pelos seus Soft Machine na abertura das linguagens do rock a muitas outras contaminações, das visões do psicadelismo ao jazz, não o votou, contudo, ao esquecimento. E quando, há alguns meses uma conversa com um amigo puxou conversa, viu-se com o contacto de um editor nas mãos e, afinal, “casa” para as canções que entretanto tinha vindo a compor (mesmo sem as pensar para eventual disco). Regressou a Inglaterra, convocou uma série de músicos (entre os quais o velho parceiro Robert Wyatt, Phil Manzanera ou os elementos dos Teenage Fanclub) para, em diversos locais, por vários estúdios, construir aos poucos aquele que se revela, agora, como um dos seus melhores discos de uma obra a solo que remonta a 1969. The Unfairground é um disco sobretudo consciente de uma realidade incontornável: o tempo. O tempo que passou, os feitos e não feitos, os presentes e os ausentes, os caminhos certos, as curvas erradas, são pointo de partida para um conjunto de histórias que frequentemente revelam traços na primeira pessoa, mas nas quais, e como sempre, Ayers mantém clara uma simplicidade pop. Não é um disco de ajuste de contas com o passado, mas antes revelador de uma capacidade adulta em compreende-lo, sem o esquecer, sem o arrumar, antes integrando-o como fundação para o presente que se faz nova colecção de canções onde, mesmo quando evidenciados alguns arrependimentos, nunca se instala entre as notas cantadas uma única sugestão de depressão. Pelo contrário, os arranjos, muitas vezes sumptuosos, fazem destas histórias uma celebração de vida. E é entre a voz (clássica, de crooner) e a versatilidade dos soberbos arranjos que Ayers encanta como há muito o não fazia. Versáteis nas referências convocadas, esses arranjos ora convocam o calor do México em Baby Come Home como recordam a elegância de um Forever Changes (dos Love) ou Odissey And Oracle (dos Zombies) em Friends And Strangers ou Cold Shoulder... Isto sem esquecer uma discreta revisitação de linguagens que evocam os primeiros dias dos Soft Machine, em Brainstorm. Fossem todos os regressos assim...
Kevin Ayers
“The Unfairground”
Tuition / Ananana
4/5
Para saber mais: site oficial
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O que era promessa no início da década é agora absoluta conformação. Em Trash YéYé Benjamin Biolay confirma em pleno que é hoje o grande nome da actual canção pop/rock francesa (escola alternativa). E que, ao contrário do que muito discurso mediático gosta de passar, nem só de (boa) electrónica, hip hop e atenção peculiar para com as músicas de África vive a França dos nossos dias. Como Arthur H, sublinha uma inscrição da sua obra (sobretudo pela atitude vocal) entre heranças directas de “mestre” Gainsbourg. Todavia, de álbum para álbum, tem vindo a construir um espaço de afirmação de uma personalidade criativa que transcende há muito o que possam parecer meras afinidades no timbre, na prosódia do canto, na sugestão dos ambientes. E, aí, uma vez mais, Trash Yé Yé é determinante peça num processo de demarcação que hoje não deixa dúvidas sobre o seu sucesso. Uma vez mais Biolay usa a música para reflectir sobre os modos e factos de uma sociedade obsessiva, altamente sexualizada, as suas fantasias e grandes dúvidas. Fá-lo num espaço onde os olhares sobre o presente não vetam espaço ao aflorar de momentos de nostalgia. E num terreno de surpreendente versatilidade nas formas e rumos, no mesmo disco coexistindo em harmonia instantes de melancolia (uma quase norma na obra de Biolay) com outros de erupção emocional (todavia nunca necessariamente festivos). Trash Yé Yé á, também, o álbum em que, melhor que nunca, Benjamin Biolay recorre às artes finais (a que habitualmente chamamos arranjos) para cenografar com exigente cautela e empenho os palcos de três minutos em que cada canção acontece. Este é o seu melhor disco e um dos mais saborosos instantes pop do ano.
Benjamin Biolay
“Trash Yé Yé”
Virgin / EMI Music Portugal
4/5
Para ouvir: MySpace
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Sempre que se fala nos New Pornographers, um rótulo-papão toma conta do debate. Supergrupo... De facto, A.C. Newman ou Neeko Case já tinham obra feita e reconhecida antes de formarem a banda e, como os seus demais elementos, não esgotam na sua existência conjunta a sua dedicação à música. Contudo, se há cálice que os New Pornographers tentam afastar de si a cada entrevista, ele é o deste rótulo que os persegue. E convenhamos que, mais interessante que o debate do sim ou não (se são ou não supergrupo), é escutar os seus discos e verificar que, aos dez anos de carreira, a banda canadiana tem uma obra feita, uma linguagem definida e um espantoso lote de boas canções já gravadas. Challengers é o seu quarto álbum de originais e um seguro sucessor do belo Twin Cinema (de 2005), no qual mostravam já uma alma entregue a prazeres power pop de costela indie, as guitarras e vozes em perfeito diálogo sob a batuta de melodias simples e eficazes. Challengers mantém a rota no mesmo sentido, talvez refreando um pouco alguns dos ímpetos rítmicos e ocasionalmente ruidosos de pontuais momentos do álbum anterior. Newmann é o autor da esmagadora maioria das canções, que confirmam uma escrita madura, tranquila e conhecedora da banda que lhe dá corpo. Não têm a mestria gourmet de uns The Shins, mas ao quarto álbum os New Pornographers mostram como é possível recontextualizar heranças pop (sobretudo de 60, dos Zombies aos Beach Boys) num contexto guitar pop de travo indie contemporâneo. Sem nunca adoçar demasiado as canções, Challengers é um disco de sóbrio classicismo pop, que sabe bem ouvir vezes sem conta.
The New Pornographers
“Challengers”

Matador
3/5
Para ouvir: MySpace
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Não há dúvidas sobre o estatuto de reconhecido respeito (e evidente popularidade) que os Clã vivem na actual cena musical portuguesa. Nascidos no surto de atenções por novas formas de abordar a canção em meados de 90, evoluíram inteligente e gradualmente por caminhos que os levaram a construir a sua maneira de estar na pop, vincando por um lado um prazer absoluto no desafio da melodia, por outro uma sóbria gestão da palavra (aqui abrindo, desde cedo, pontes de colaboração com muitos talentos na escrita, contraforte fulcral de uma obra que mostra como se pode e deve usar a língua portuguesa num contexto pop). Os Clã são, de facto, hoje, o paradigma do que entendemos como a melhor pop que se faz na nossa língua, feito que resulta da soma de uma magnífica obra discográfica com uma não menos importante contribuição dos palcos para a definição dessa mesma personalidade. Há três anos, Rosa Carne representou uma experiência de ousadia plenamente compensada pelo reconhecimento de que, ali, o grupo tinha transcendido o plano habitual da vida pop através de um invulgar conjunto de canções que definiam, como poucas, o que se entende por obra-prima. Seguiu-se um episódio de balanço ao vivo. Agora, no seu quinto álbum de originais, confirmam um jogo de cintura capaz de contornar formas e adoptar os caminhos que a história musical do grupo entenda. De certa maneira, apesar de estilisticamente mais aberto e versátil, o disco retoma o caminho mais luminoso e “acessível” de Lustro, o que não os impede de continuar a moldar as canções à sua maneira de as viver. Os arranjos continuam a surpreender e a impedir a instaçação da monotonia que mora em tantos outros discos. E mantém-se uma curiosidade reforçada pelo diálogo com o Brasil (com expressão maior num dueto com Fernanda Takai). Contudo, depois de um Rosa Carne de excepção, Cintura mostra uns Clã talvez a jogar no seguro. Nada contra... Apenas aguçando a sede de novas ousadias em cenas dos próximos capítulos.
Clã
“Cintura”

EMI Music Portugal
3/5
Para ouvir: site oficial


Também esta semana:
Bob Dylan (best of), Jim White, Felix da Housecat, Babyshambles, Annie Lennox, Bruce Springsteen, Mick Jagger (best of), Lou Rhodes, Joni Mitchell, Rolling Stones (4 DVD)

Brevemente:
8 de Outubro: David Fonseca, Beirut, Pet Shop Boys, Tiny Masters Of Today (ed local), The Cloud Room (ed europeia), Ed Harcourt, Fiery Furnaces, The Hives, Robert Wyatt, Teddy Thompson, Brasilian Girls, Black Francis, Richard Hawley (ed local), Turin Brakes
10 de Outubro: Radiohead
15 de Outubro: Efterklang. Lilac Time, REM (ao vivo), Roisin Murphy, Underworld, Undertones, Marc Bolan (BBC sessions), Carter USM (best of), Vashty Bunyan (antologia), Susumu Yokota
22 de Outubro: Dave Gahan, Soulwax (remixes), Lilac Time, To Rocco Rot, Van Morrison (best of)

Outubro: Junior Boys, Sex Pistols (caixa de singles), Mazgani, Tributo a Adriano Correia de Oliveira, Tributo aos Mão MortaNovembro: Duran Duran, Sigur Rós (CD + DVD), Sex Pistols (singles), Led Zeppelin (best of), Scissor Sisters (DVD)