Texto publicado no Diário de Notícias (16 Set.), com o título 'Revisitando a Maria de Jean-Luc Godard' >>> Os tempos mudam... Em 1985, quando surgiu o filme Eu Vos Saúdo, Maria, de Jean-Luc Godard, crentes e não crentes envolveram-se em acesos debates que iam dos temas fundadores do catolicismo até às condições de exercício e liberdade da arte contemporânea. Em Portugal, houve mesmo quem tivesse tentado impedir a projecção do filme numa sessão da Cinemateca (eu estava lá, na qualidade de elemento do respectivo sector de programação). Mais de vinte anos depois, Eu Vos Saúdo, Maria acaba de ser editado em DVD e que acontece? “Ninguém” diz nada...
Não que eu estivesse à espera da reedição de toda aquela agitação. Aliás, só por muita estreiteza de pensamento se poderia pensar que Godard pretendia difamar as crenças dos católicos: retratista obsessivo da mulher, Godard encontrou na sua Maria (Myriem Roussel) uma esplendorosa personificação do desejo feminino e da sua reconfiguração de corpo e alma. Mas dá que pensar: num universo de tantas polémicas anedóticas (predominantemente futebolísticas), já “ninguém” se recorda, pelo menos, de que estamos perante uma das obras artísticas mais discutidas da segunda metade do século XX?
Como explicar esta normalização pela indiferença? Não, por certo, pelo aspecto “datado” do filme. Bem pelo contrário: ver ou rever Eu Vos Saúdo, Maria é deparar com um fulgurante exercício de cinema que aposta na abordagem sistemática do factor humano, na travessia dos seus enigmas materiais e da sua sedução espiritual. O que (não) está a acontecer decorre antes do triunfo de uma cultura do efémero e do gratuito em que, desgraçadamente, se perdeu a disponibilidade para pensar a relação dos seres humanos com o sagrado.
Atrevo-me mesmo a pensar que esta apatia penaliza, não em particular os admiradores de Godard (estamos bem, muito obrigado), mas todos aqueles que, de um modo ou de outro, exercem algum trabalho empenhado em valorizar a dimensão espiritual e transcendental da existência humana. “Godardianos” ou não, todos perdemos com este alheamento rotineiro em relação a todas as formas de procura da identidade humana. Será que somos mais felizes com os êxtases prometidos pelo derradeiro modelo de telemóvel ou pelo milésimo concurso televisivo “familiar”? Eu Vos Saúdo, Maria não é sobre isso. Mas é, por certo, contra a futilidade de tudo isso.
Não que eu estivesse à espera da reedição de toda aquela agitação. Aliás, só por muita estreiteza de pensamento se poderia pensar que Godard pretendia difamar as crenças dos católicos: retratista obsessivo da mulher, Godard encontrou na sua Maria (Myriem Roussel) uma esplendorosa personificação do desejo feminino e da sua reconfiguração de corpo e alma. Mas dá que pensar: num universo de tantas polémicas anedóticas (predominantemente futebolísticas), já “ninguém” se recorda, pelo menos, de que estamos perante uma das obras artísticas mais discutidas da segunda metade do século XX?
Como explicar esta normalização pela indiferença? Não, por certo, pelo aspecto “datado” do filme. Bem pelo contrário: ver ou rever Eu Vos Saúdo, Maria é deparar com um fulgurante exercício de cinema que aposta na abordagem sistemática do factor humano, na travessia dos seus enigmas materiais e da sua sedução espiritual. O que (não) está a acontecer decorre antes do triunfo de uma cultura do efémero e do gratuito em que, desgraçadamente, se perdeu a disponibilidade para pensar a relação dos seres humanos com o sagrado.
Atrevo-me mesmo a pensar que esta apatia penaliza, não em particular os admiradores de Godard (estamos bem, muito obrigado), mas todos aqueles que, de um modo ou de outro, exercem algum trabalho empenhado em valorizar a dimensão espiritual e transcendental da existência humana. “Godardianos” ou não, todos perdemos com este alheamento rotineiro em relação a todas as formas de procura da identidade humana. Será que somos mais felizes com os êxtases prometidos pelo derradeiro modelo de telemóvel ou pelo milésimo concurso televisivo “familiar”? Eu Vos Saúdo, Maria não é sobre isso. Mas é, por certo, contra a futilidade de tudo isso.