domingo, julho 01, 2007

Sinais de Verão

A auto-edição não é novidade na música clássica, muitos sendo já os artistas (intérpretes ou mesmo compositores) que resolveram tomar entre mãos a edição da sua música. Stockhausen tem uma editora pela qual lança todas as suas gravações. Glass tem outra, que além da sua música edita aqueles com quem sente afinidade, assim como através dela tem dado vida aos arquivos da Kitchenware. Agora, é a Chicago Symphony Orchestra quem se apresenta com editora própria. Trata-se da CSO Resound, que apresenta como primeiro lançamento uma espantosa gravação da terceira sinfonia de Mahler, sob direcção de Bernard Haitink (n. 1929), contando ainda com a mezzo-soprano Michele DeYoung e um trabalho de design deslumbrante na capa. O maestro holandês, que ocupa desde o ano passado o lugar (recentemente criado) de maestro principal da CSO já tinha gravado a terceira de Mahler (no mercado existe ainda uma edição em registo pela Concertgebow Orchestra, e a voz de Maureen Forrester). A nova gravação foi efectuada em Outubro do ano passado. A elegância da interpretação e pujança das cores e força que brotam dos instrumentos em pleno justificam esta escolha para inaugurar o catálogo discográfico da orquestra. Pastoral, luminosa, plena de sinais das incontornáveis forças vivas que associamos à natureza, a terceira é uma das mais belas e inspiradoras entre as sinfonias de Mahler. E também uma das estruturalmente menos convencionais. Longa (nesta gravação chega a uma hora e 40 minutos), é por isso menos tocada que outras. Mas esta gravação em disco merece absoluta atenção.

Mahler passou o Verão de 1893 em Steinbach am Attersee. E foi nesse Verão que definiu a sua atitude de trabalho. Passaria a compor na estação do calor e da luz, no campo, deixando para a cidade e o Inverno as suas outras tarefas e obrigações como maestro e administrador. No Verão seguinte construiu uma pequena cabana, na qual mais não quis ter que um piano, uma secretária, uma estante com livros e um fogão de lenha. Da janela via o prado e o lago mais ao fundo. Inspirador, o panorama traduziu-se em muita da deslumbrante música que nos deixou. A terceira sinfonia foi aí composta, entre os Verões de 1895 e 96. Mahler começava o dia pelas 6.30 da manhã. Traziam-lhe o pequeno almoço. E, depois, havia ordem para não se incomodado até que a porta da cabana fosse novamente aberta. Perto da cabana foi montado um espantalho para afastar pássaros eventualmente ruidosos. Aos aldeãos foi pedido que por ali não passassem. Ao fim da tarde, Mahler parava. Depois de uma sesta lia um livro, passeava... Para retomar o trabalho no dia seguinte.
Com evidente pulsão narrativa (que na origem poderíamos descrever como uma história do despertar de um Verão e de sucessivas revelações feitas pelas flores, animais, homens, anjos e o amor), a terceira sinfonia foi de projecção lenta e trabalhosa para o compositor. O primeiro andamento surgiu depois de toda a restante música concluída. E o final original acabou ceifado, reaparecendo como o último andamento da quarta sinfonia. O primeiro andamento, o mais longo (cerca de um terço de toda a sinfonia), é uma espantosa visão contemplativa sobre o grande espaço natural sob a luz e força do Verão, revelando pequenos mundos e acontecimentos numa invulgarmente versátil teia de sugestões.. Os restantes são mais curtos, mais centrados em ideias e “personagens”, o quarto usando um texto extraído de Also Spracht Zarathustra (de Nietzsche), o quinto extraindo palavras de Des Knaben Wunderhorn, o sexto (final), encerrando majestosamente tão vibrante visão pastoral.
PS. Esta edição não deverá estar disponível no mercado de loja convencional, a menos que alguma distribuidora local a encomende. Está contudo acessível pela Internet por CD ou download.