segunda-feira, abril 30, 2007

Vampiros de 1995

Na genealogia do moderno cinema americano, Abel Ferrara (nascido no Bronx, em 1951) tende a ser dos autores mais tipificados — e também por isso dos menos conhecidos pelas especificidades do seu trabalho. De facto, mesmo se é verdade que muitos dos seus filmes se impõem através de uma relação ambígua com muitos géneros da produção clássica (por exemplo, o policial Bad Lieutenant, 1992), não é menos verdade que o seu universo é inseparável de uma dimensão eminentemente filosófica e religiosa: ele é, afinal, um cineasta de um mundo ferido pela ausência de Deus e também pelo seu permanente apelo simbólico.
Tanto bastaria para transformar a edição portuguesa em DVD de Os Viciosos (The Addiction, 1995) num grande aconte-cimento. Ferrara propõe, aqui, um arriscado exercício criativo, evocando a tradição do filme de vampiros para a refazer numa Nova Iorque assombrada e contemporânea (admiravelmente fotogra-fada a preto e branco por Ken Kelsch). As componentes tardicionais do género vão-se dissolvendo numa intriga em que o onirismo coincide com uma violenta pulsão realista, tanto mais perturbante quanto pelo filme perpassam algumas memórias traumáticas do século XX, incluindo o envolvimento dos EUA no Vietname. Com um leque invulgar de interpretações — Lili Taylor, Christopher Walken, Annabella Sciorra [foto], Edie Falco, etc. —, Os Viciosos é também uma apoteose da dimensão mais física, dir-se-ia fisiológica, do cinema de Ferrara: cada actor/actriz representa no limite da verosimilhança, gerando personagens em que, drasticamente, a máxima violência se confunde com a máxima vulnerabilidade.