É, sem qualquer hesitação (e desde já), um dos acontecimentos centrais na edição portuguesa de DVD em 2007. Ou seja: A Grande Esperança — o lendário Young Mr. Lincoln —, dirigido por John Ford em 1939. E se este foi um ano marcado pelo impacto de E Tudo o Vento Levou, filme em que a vocação espectacular de Hollywood se combinava com a afirmação plena da fotografia a cores, A Grande Esperança, com as suas sublimes imagens a preto e branco (da responsabilidade de Bert Glennon e Arthur C. Miller), ficou como um modelo simultaneamente épico e poético: épico, pelo modo como nele a história se transfigura em mito; poético, pela devolução do mito ao espaço íntimo das personagens, transformando o cinema num exercício delicado de abordagem dos destinos individuais e colectivos.
O filme não é uma "biografia" de Abraham Lincoln (1809-1865), 16º Presidente dos EUA. Não é sequer uma abordagem dos seus anos como líder político. Trata-se antes de um retrato do seu nascimento e formação como personagem política. Mais precisa-mente: Ford encena o início da carreira de Lincoln como advogado, subtilmente mostrando como a intervenção nos tribunais vai fazendo dele um observador da dinâmica social e, por extensão, um agente dessa mesma dinâmica. No papel de Lincoln, Henry Fonda tem uma daquelas composições que, por si só, definem um grande actor: o "seu" Lincoln é um ser humano em constante confronto com a sua própria lenda, por assim dizer discutindo a sua identidade através da relação plural com a comunidade e os seus valores.
E porque o cinema é feito de muitos e felizes paradoxos, vale a pena lembrar que este foi sempre um filme de referência para um cineasta que, na altura, trabalhava num contexto bem diferente: o soviético Sergei M. Eisenstein. Segundo ele próprio afirmou, o seu Ivan, o Terrível (1944-1958) viria a beneficiar da inspiração formal de Young Mr. Lincoln. E não serei eu que o vou desmentir.