terça-feira, março 06, 2007

RTP: memórias e interrogações (2/3)

> Esta é a segunda parte de um texto — intitulado 'A RTP, o país, a sua tele-visão e o futuro dela' — publicado na revista "6ª" (Diário de Notícias), de 2 de Março de 2007.

O drama central desta evolução tem por cenário inevitável a RTP. E não apenas porque, durante 34 anos, a história da televisão em Portugal se confunde com a história da RTP. Sobretudo porque, para todos os efeitos, a RTP é a “nossa” televisão, quer dizer, aquela que emana do Estado, isto é, da própria colectividade.
Discutir esta dimensão pública da RTP não é enredarmo-nos, uma vez mais, nos prós e contras do conceito de “serviço público”. Aliás, o desgaste que o conceito tem sofrido é sintomático do estreitamento do debate que — da cena política ao espaço económico — se foi reduzindo a jogos florais de “mais” cultura ou “menos” cultura (como se a cultura fosse algo de universal e não uma paisagem imensa de permanentes clivagens e contradições). Discutir esta dimensão será, afinal, renovar a pergunta mais básica, legitimada por muitas práticas e opções de anos recentes: porque é que a RTP desistiu de se afirmar como líder de referência do espaço televisivo, preferindo ir a reboque dos modelos dos canais privados?
Infelizmente, a complexidade que tal pergunta atrai é todos os dias mascarada por muitos maniqueísmos que tendem a dominar a comunicação televisiva e, há que reconhecê-lo, também alguns discursos de natureza jornalística. O problema de fundo não está apenas na maior ou menor percentagem de programas “culturais” – isto mesmo não esquecendo que, de acordo com dados da Marktest referentes a 2006, a oferta de “arte e cultura” foi, nas televisões portuguesas, a ridicularia de 0,3 por cento, contra 25,4 por cento de “ficção” (isto é, no essencial, telenovela e seus derivados) e 14,5 de “divertimento” (reality shows, concursos, etc., etc., etc.). O problema de fundo decorre desta contradição viva: num mundo de vertiginosa transformação dos canais e instrumentos de difusão da informação e do espectáculo – neste mundo em que, literalmente, a televisão passou a estar no nosso bolso (veja-se a revolução anunciada pelo iPhone, da Apple) – as linhas de força do debate televisivo em Portugal continuam determinadas por um conceito cujo anacronismo temático e económico há muito se pressente: o de televisão “generalista”.
Daí este puzzle a que chegámos. Anuncia-se — aliás, estamos já a viver — uma nova era mediática em que as barreiras tradicionais entre televisão, computador e comunicações telefónicas vão ser ultrapassadas, dando lugar a modos de ver (e dar a ver) cujas particularidades, em muitos aspectos, ainda não conseguimos descrever, muito menos avaliar. Ao mesmo tempo, o espaço televisivo português continua a gerir-se, no essencial, por modelos generalistas que correspondem a outras conjunturas sociais e que, além do mais, têm vindo a reduzir a sua oferta a um leque cada vez mais apertado de alternativas.