O texto que se segue foi publicado na revista "6ª" (Diário de Notícias, 30 de Março de 2007), com o título 'Quando as imagens nos querem oferecer um destino'. Era parte integrante de um dossier sobre a exposição 'Arte e Propaganda', no Deutsches Historisches Museum, em Berlim, com textos de Nuno Galopim (sobre a exposição) e Nuno Crespo (sobre o livro As Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt - ed. D. Quixote).
Quando é que uma imagem deixa de ser uma imagem que nos quer apenas seduzir e começa a ser uma imagem de propaganda? Ou ainda: quando — e, sobretudo, como — é que um discurso propagandístico se imiscui numa imagem, contrariando a sua utópica inocência?
Não vale a pena voltarmos a alimentar qualquer ingenuidade face à suposta candura original das imagens, quanto mais não seja por efeito da brutalidade televisiva que nos rodeia — afinal de contas, a moral das imagens que Big Brother e afins nos tentam impor é mais insidiosa e, por vezes, emocionalmente mais violenta que muitas imagens ditas de propaganda. De facto, nenhuma imagem é simples, linear ou "definitiva". A imagem de propaganda é apenas uma imagem que não quer ser lida para além do espaço dos valores que a geraram. Mais do que autoritária, é um imagem que nasce sempre de um medo não confessado perante a variedade do mundo.
E basta percorrer estas páginas [a referência remete para as imagens da exposição Arte e Propaganda] para compreendermos que só por hipocrisia julgaremos que a propaganda pelas imagens é apanágio dos regimes ditatoriais. Claro que seria muito mais fácil (e, sobretudo, desculpabilizante) considerar que a propaganda é uma prática dos "outros", sejam eles quais forem. Mas a história ensina-nos que é sempre simplista e, sobretudo, equívoco pretender que a propaganda é o mal das ditaduras e a informação a bênção das democracias. Quanto mais não seja por amor dos ideais democráticos, é preciso pensar esses contrários também na sua proximidade.
Não se trata, entenda-se, de um mero problema de classificação ideológica. O que está em jogo é algo de mais fundo e também, sem dúvida, mais perturbante. Isto porque, no limite, a imagem de propaganda pode ser desejada por qualquer um de nós — mesmo por quem não se reconheça nos ideais que tal imagem pode enunciar ou celebrar.
A história europeia do século XX legou-nos um caso exemplar de tal complexidade ideológica & artística na obra (cinematográfica) de Leni Riefenstahl (1902-2003). De facto, a sua função de cineasta oficial do fascismo hitleriano — condensada no filme O Triunfo da Vontade (1935), sobre o congresso do partido nazi, em 1934 — não basta para dar conta da complexidade do seu trabalho e, em particular, das suas componentes experimentais, de uma importância formal e estética há muito reconhecida por cineastas das mais diversas origens e sensibilidades. Quer isto dizer, pelo menos, algo de muito básico. A saber: que nenhuma imagem de propaganda pode ser dissociada do seu contexto. Ou ainda: que a sua função propagandística se fundamenta (e, paradoxalmente, esgota) no próprio contexto que a gerou.
Daí a lucidez pedagógica a que qualquer uma destas imagens nos convida e, num certo sentido, obriga. Porquê? Porque a sua contextualização reforça o seu poder, ao mesmo tempo que denuncia os seus inapeláveis limites.
Nesta perspectiva, talvez possamos considerar que a imagem de propaganda é aquela que, em última instância, tenta encenar o seu contexto (histórico, social, económico, etc.), não como uma realidade em movimento, mas como algo de adquirido, inalterável e, afinal, intocável. Talvez por isso, muitas imagens de propaganda possuem algumas componentes (sublinho: algumas) que podemos aproximar da lógica das mais tradicionais vinhetas religiosas. Mais do que representar personagens ou acções, as imagens de propaganda ambicionam dar a ver as componentes teológicas (e, sobretudo, teleológicas) de algo que se impõe a tudo e a todos – dos representados aos leitores/espectadores – como um destino.
Para nós, portugueses, esta teia de questões suscitadas pelas imagens de propaganda é tanto mais interessante quanto parece óbvio que somos uma sociedade que está longe de ter digerido (e integrado no seu património histórico) as imagens específicas da ditadura salazarista. Aliás, o problema é tanto mais interessante — quer no plano político, quer no domínio da ética — quanto o Estado Novo de Salazar foi um regime muito resistente à simples proliferação de imagens. Provavelmente, tal resistência continua a ser uma componente activa do nosso imaginário.
Quando é que uma imagem deixa de ser uma imagem que nos quer apenas seduzir e começa a ser uma imagem de propaganda? Ou ainda: quando — e, sobretudo, como — é que um discurso propagandístico se imiscui numa imagem, contrariando a sua utópica inocência?
Não vale a pena voltarmos a alimentar qualquer ingenuidade face à suposta candura original das imagens, quanto mais não seja por efeito da brutalidade televisiva que nos rodeia — afinal de contas, a moral das imagens que Big Brother e afins nos tentam impor é mais insidiosa e, por vezes, emocionalmente mais violenta que muitas imagens ditas de propaganda. De facto, nenhuma imagem é simples, linear ou "definitiva". A imagem de propaganda é apenas uma imagem que não quer ser lida para além do espaço dos valores que a geraram. Mais do que autoritária, é um imagem que nasce sempre de um medo não confessado perante a variedade do mundo.
E basta percorrer estas páginas [a referência remete para as imagens da exposição Arte e Propaganda] para compreendermos que só por hipocrisia julgaremos que a propaganda pelas imagens é apanágio dos regimes ditatoriais. Claro que seria muito mais fácil (e, sobretudo, desculpabilizante) considerar que a propaganda é uma prática dos "outros", sejam eles quais forem. Mas a história ensina-nos que é sempre simplista e, sobretudo, equívoco pretender que a propaganda é o mal das ditaduras e a informação a bênção das democracias. Quanto mais não seja por amor dos ideais democráticos, é preciso pensar esses contrários também na sua proximidade.
Não se trata, entenda-se, de um mero problema de classificação ideológica. O que está em jogo é algo de mais fundo e também, sem dúvida, mais perturbante. Isto porque, no limite, a imagem de propaganda pode ser desejada por qualquer um de nós — mesmo por quem não se reconheça nos ideais que tal imagem pode enunciar ou celebrar.
A história europeia do século XX legou-nos um caso exemplar de tal complexidade ideológica & artística na obra (cinematográfica) de Leni Riefenstahl (1902-2003). De facto, a sua função de cineasta oficial do fascismo hitleriano — condensada no filme O Triunfo da Vontade (1935), sobre o congresso do partido nazi, em 1934 — não basta para dar conta da complexidade do seu trabalho e, em particular, das suas componentes experimentais, de uma importância formal e estética há muito reconhecida por cineastas das mais diversas origens e sensibilidades. Quer isto dizer, pelo menos, algo de muito básico. A saber: que nenhuma imagem de propaganda pode ser dissociada do seu contexto. Ou ainda: que a sua função propagandística se fundamenta (e, paradoxalmente, esgota) no próprio contexto que a gerou.
Daí a lucidez pedagógica a que qualquer uma destas imagens nos convida e, num certo sentido, obriga. Porquê? Porque a sua contextualização reforça o seu poder, ao mesmo tempo que denuncia os seus inapeláveis limites.
Nesta perspectiva, talvez possamos considerar que a imagem de propaganda é aquela que, em última instância, tenta encenar o seu contexto (histórico, social, económico, etc.), não como uma realidade em movimento, mas como algo de adquirido, inalterável e, afinal, intocável. Talvez por isso, muitas imagens de propaganda possuem algumas componentes (sublinho: algumas) que podemos aproximar da lógica das mais tradicionais vinhetas religiosas. Mais do que representar personagens ou acções, as imagens de propaganda ambicionam dar a ver as componentes teológicas (e, sobretudo, teleológicas) de algo que se impõe a tudo e a todos – dos representados aos leitores/espectadores – como um destino.
Para nós, portugueses, esta teia de questões suscitadas pelas imagens de propaganda é tanto mais interessante quanto parece óbvio que somos uma sociedade que está longe de ter digerido (e integrado no seu património histórico) as imagens específicas da ditadura salazarista. Aliás, o problema é tanto mais interessante — quer no plano político, quer no domínio da ética — quanto o Estado Novo de Salazar foi um regime muito resistente à simples proliferação de imagens. Provavelmente, tal resistência continua a ser uma componente activa do nosso imaginário.