segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Morte de uma Playmate

É uma daquelas mortes (*) sobre as quais não sabemos muito bem o que dizer. Eu, pelo menos, não sei — e sinto-me compelido a lidar com essa dificuldade. Sabemos, claro, que podemos sempre ceder à facilidade da caricatura mais ou menos machista: Anna Nicole Smith como repetição do cliché da "loura estúpida", de seios grandes e chancela da revista Playboy (Playmate de 1993, consagrada na capa da edição de Junho).
Podemos também evocar a inspiração óbvia de Marilyn — também Playmate, a primeira (Dezembro 1953) — e sublinhar como ambas morreram em cenários trágicos: Norma Jean aos 36 anos, segundo os registos da época por uma dose excessiva de pílulas Nembutal; Anna Nicole Smith aos 39 anos, aparentemente devido aos efeitos combinados de medicamentos e álcool (embora a polícia tenha afastado a hipótese de crime, prosseguem as investigações sobre as circunstâncias da morte).
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Depois, tudo isto se baralha pelo próprio aparato mediático que (sempre) envolveu Anna Nicole Smith e a transformou — com a sua passividade ou a sua conivência — em matéria de eleição para o espírito "tablóide" de muitas formas contemporâneas de informação. A sua vida parece ter-se construído (ou destruído) como uma acumulação de peripécias em que o trágico e o burlesco coexistem num jogo de terrível indiferença mútua: desde a morte do filho de um primeiro casamento (em Setembro de 2006, tinha ele 20 anos) até ao casamento com um milionário (tinha ela 26 anos e ele 89), passando pelas muitas peripécias relacionadas com as bruscas alterações do seu peso, Anna Nicole Smith viveu, de facto, in the spotlight, suscitando reacções sempre contraditórias, desde a violência moral da hipocrisia até à impotência militante da piedade.
Daí também os insólitos contrastes da sua carreira — não esquecendo que, no seu caso, carreira pública e vida privada parecem fundir-se num infinito espectáculo de exposição pueril, tendencialmente obscena. Claro que Anna Nicole Smith nunca foi uma actriz consistente, mas é um facto que a primeira das suas participações em cinema teve a chancela dos mais "intelectuais" autores dos EUA, os irmãos Joel e Ethan Cohen, e ocorreu em The Hudsucker Proxy/O Grande Salto (1994), protagonizado por Tim Robbins, Jennifer Jason Leigh e Paul Newman. Em todo o caso, o seu papel mais emblemático, por assim dizer integrando a caricatura da sua persona, terá sido num dos títulos paródicos da série Naked Gun, com Leslie Nielsen: Aonde é que Pára a Polícia 33 1/3 - O Insulto Final (1994). Por outro lado, a figura pública de Anna Nicole Smith é também inseparável de uma actividade social de envolvimento com alguns grupos militantes. Ela foi, por exemplo, uma das mulheres que aceitou posar para a PETA (People for the Ethical Treatment of Animals), surgindo numa campanha contra o uso de peles de animais em vestuário, recriando a célebre iconografia de Marilyn [imagem de abertura deste post] num quadro de Os Homens Preferem as Louras (1953), de Howard Hawks.
Por tudo isso, por todos esses contrastes, dir-se-ia que a morte prematura e brutal de Anna Nicole Smith não pode deixar de ser recebida como uma ferida dolorosa no interior de uma cultura popular sempre carente de espectáculo e glamour. Scott Holleran, do Box Office Mojo, por exemplo, lembra a dimensão mais cruel de circo do mundo de que ela, por assim dizer, exaltou a luz, sofrendo nas suas muitas zonas de sombra. No New York Times, Caryn James refere a filha de cinco meses que ela deixa, sublinhando a tristeza da sua fama, na vida como na morte. Entretanto, numa perspectiva seca e pragmática, afinal muito realista, escreve-se no The Village Voice que aqueles que a "exploraram" em vida, continuarão a fazê-lo depois da sua morte.
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Vivemos num mundo de "prós & contras" cuja lei mais forte é a de nos obrigar a escolher de forma maniqueísta, sempre que a própria complexidade dos factos ou das ideias é demasiado atípica ou perturbante. Ora, face a Anne Nicole Smith, a insuficiência dessa lei é tanto maior quando a sua vida — e, sobretudo, a sua morte — decorre da própria cultura (temática, visual e simbólica) que todos os dias consumimos. E vamos continuar a consumir, como se ela ainda vivesse.

* ANNA NICOLE SMITH — nome verdadeiro: Vicky Lynn Marshall (28 Nov. 1967 - 8 Fev. 2007)