segunda-feira, janeiro 15, 2007

Uma ficção em três partes (3)

Ano Bowie – 8
'A Fase Seguinte' - conto publicado na revista "6ª", Diário de Notícias (5 Jan.)



(...)
A fase seguinte começa com a esterilização de cinco alfinetes. O número cinco não foi nenhuma escolha elaborada. Descobri seis numa caixinha de madeira onde também estava um emblema para usar na lapela do casaco e um papel dobrado, algo envelhecido, com um número de telefone escrito a lápis e, a tinta vermelha, "23h18". Com apenas seis alfinetes em casa, pareceu-me sensato conservar um como reserva.
Tentei substituir o adesivo, mas não o consegui arrancar. A solução foi sobrepor-lhe outro adesivo, agora maior, aproveitando para imobilizar as pontas de cabelos que caíam pela testa. A questão é: devo aplicar o primeiro alfinete no centro da pupila, aguardando um efeito de círculos concêntricos, semelhante ao de uma pedra que cai na água, ou devo procurar, desde logo, o círculo exterior da pupila, esperando gerar uma reacção de dilatação dos tecidos? A questão é tanto mais intrigante quanto nada me pode garantir que, mesmo havendo dilatação, se produza a transformação cromática que também procuro.
Algo de mim está a escutar as imperfeições do vinil que a agulha do gira-discos devolve em forma de microscópicos ruídos incrustados no corpo da canção. Já vamos em Because You're Young. A pressão no olho torna-me inesperadamente mais sensível à guitarra de Pete Townshend, como se ouvisse uma canção dentro de outra canção. Antes da primeira aplicação do primeiro alfinete, caminho de um lado para o outro. É verdade, estou mesmo nu: o espelho do fundo do corredor garante-me isso, agora. Desloco um pouco a cortina da janela grande da sala e vejo uma enorme agitação, lá em baixo, na rua. Há uma ambulância com luzes azuis a rodar e um carro também com luzes, mas não é uma ambulância. Tenho o alfinete na mão, encosto-o à coxa direita e carrego um pouco, imaginando a minha pele a desenhar um pequeno funil de sangue. Caminho de regresso ao espelho. O olho direito parece ter perdido força, como se fosse uma máquina desligada do resto do rosto. Esforço-me por abri-lo.
Na verdade, não estou a ver nada pelo olho direito e, pelo esquerdo, pouco mais resta que uma paisagem de cores indefinidas, derramadas na superfície sem contorno do rosto. Levanto lentamente a mão direita, tentando apontar o alfinete para o perímetro da pupila do olho esquerdo. Quando carrego, alguém arromba a porta, num estrondo que parece nascer numa região remota no interior do meu cérebro. O azul derramado em forma de lágrima desapareceu sob uma nuvem vermelha. Lembro-me do calor da nuvem, de uma dor branca a nascer de um ponto eléctrico, lá longe, algures na recta que une o centro da minha cabeça à antena de televisão erguida do outro lado da cidade. Lembro-me também do som de uma cadeira a cair e do deslizar brusco da agulha sobre o vinil. É um rasgão que me impede de ouvir a segunda parte de It's No Game. Devo avaliar o andamento dos trabalhos. Preciso de um espelho.

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