'A Fase Seguinte' - conto publicado na revista "6ª", Diário de Notícias (5 Jan.)
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Resolvi a questão imobilizando a pálpebra superior. Revirei-a e apliquei-lhe uma tira de adesivo, do mesmo que se usa no tratamento de feridas. Sentia a pele macerada pelo efeito da cola do adesivo e também picadas das pestanas que, nessa operação, tinham ficado reviradas, algumas dobradas sobre si mesmas. Além do mais, embora tivesse tido o cuidado de não comer nada nas três horas anteriores, assaltava-me uma sensação de vómito que se transformava, a pouco e pouco, numa pressão aguda à entrada do estômago.
De novo em frente ao espelho, repeti os toques com o pincel. Apesar de um ligeiro efeito de derrame provocado pelo líquido lacrimal, compreendi que era possível passar à fase seguinte. De tal modo que, face ao meu rosto de peixe mascarado, esqueci a sensação de dor e fui-me sentar na sala a ouvir o vinil de Scary Monsters (and Super Creeps). O gira-discos estava desligado na ficha, com a agulha algures no meio de uma faixa. Ao empurrar a ficha, ouvi o som nasalado de um grito de angústia que, em dois segundos, se transformou em algo cristalino e apaziguador: "... same old thing in brand new drag / comes sweeping into view..."Embalado pela música, ouvi a campainha da porta. Levantei-me sem pensar na minha figura: o olho esquerdo revirado, uma mancha azul de tinta que já corria como uma lágrima, o tronco nu pingado de azul. Aliás, pressenti que não estava a usar nenhuma peça de roupa porque ao caminhar, sentindo frio na cintura, toquei-me e descobri o relevo do meu sexo. Abri assim a porta. Era engano, creio: uma mulher de meia idade, com um embrulho na mão e uns brincos metálicos. Lembro-me dos brincos porque, ao gritar quando me viu, recuou, escorregou no primeiro degrau e rodou para trás, duas vezes, deslizando depois até ao último dos 57 degraus que conduzem à minha porta. Lembro-me dos brincos porque o som cavo da cabeça a bater nos degraus chegava-me acompanhado por uma espéciede ritmo metalizado, breve mas estranhamente síncrono.
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Resolvi a questão imobilizando a pálpebra superior. Revirei-a e apliquei-lhe uma tira de adesivo, do mesmo que se usa no tratamento de feridas. Sentia a pele macerada pelo efeito da cola do adesivo e também picadas das pestanas que, nessa operação, tinham ficado reviradas, algumas dobradas sobre si mesmas. Além do mais, embora tivesse tido o cuidado de não comer nada nas três horas anteriores, assaltava-me uma sensação de vómito que se transformava, a pouco e pouco, numa pressão aguda à entrada do estômago.
De novo em frente ao espelho, repeti os toques com o pincel. Apesar de um ligeiro efeito de derrame provocado pelo líquido lacrimal, compreendi que era possível passar à fase seguinte. De tal modo que, face ao meu rosto de peixe mascarado, esqueci a sensação de dor e fui-me sentar na sala a ouvir o vinil de Scary Monsters (and Super Creeps). O gira-discos estava desligado na ficha, com a agulha algures no meio de uma faixa. Ao empurrar a ficha, ouvi o som nasalado de um grito de angústia que, em dois segundos, se transformou em algo cristalino e apaziguador: "... same old thing in brand new drag / comes sweeping into view..."Embalado pela música, ouvi a campainha da porta. Levantei-me sem pensar na minha figura: o olho esquerdo revirado, uma mancha azul de tinta que já corria como uma lágrima, o tronco nu pingado de azul. Aliás, pressenti que não estava a usar nenhuma peça de roupa porque ao caminhar, sentindo frio na cintura, toquei-me e descobri o relevo do meu sexo. Abri assim a porta. Era engano, creio: uma mulher de meia idade, com um embrulho na mão e uns brincos metálicos. Lembro-me dos brincos porque, ao gritar quando me viu, recuou, escorregou no primeiro degrau e rodou para trás, duas vezes, deslizando depois até ao último dos 57 degraus que conduzem à minha porta. Lembro-me dos brincos porque o som cavo da cabeça a bater nos degraus chegava-me acompanhado por uma espéciede ritmo metalizado, breve mas estranhamente síncrono.
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