segunda-feira, janeiro 15, 2007

Fanny Ardant + Mario Martone (*)

Fanny Ardant é uma actriz assim: há nela um brilho e, por assim dizer, uma luminosidade que desafia a própria luz. É algo que, sem recusar as convulsões tradicionais da psicologia, transcende as regras do retrato psicológico. Podemos reencontrar esse seu poder ambíguo — feito de encantamento e distanciamento — num pequeno grande acontecimento do nosso mercado cinematográfico: chama-se O Odor do Sangue (2004) e assinala a chegada (finalmente!) de Mario Martone às salas portuguesas.
Nascido em 1959, em Nápoles, Martone é um criador genuinamente original que, através de títulos como Morte di un Matematico Napoletano (1992), L’Amore Molesto (1995) ou Teatro di Guerra (1998), tem procurado trabalhar a partir de matrizes clássicas do melodrama. O seu objectivo: dar conta de tensões afectivas e impasses sociais muito contemporâneos.
Com Fanny Ardant e Michele Placido, O Odor do Sangue poderá definir-se como uma história de amor que desafia a própria possibilidade (formal e moral) de contar uma história de amor. Isto porque a relação entre marido e mulher é, aqui, encenada a partir das ligações extra-conjugais de ambos, vividas num clima de silenciosa conivência, numa espécie de ilegalidade consentida, potencialmente devastadora.
Não que este seja um filme sobre a fidelidade como mero jogo de “verdade” e “mentira”. Aliás, a sua respiração eminentemente trágica é estranha a qualquer dispositivo de natureza telenovelesca. Na verdade, a história de Silvia e Carlo integra uma interrogação absolutamente selvagem. A saber: até que ponto cada cônjuge pode, ou sabe, reconhecer a verdade mais radical do(s) desejo(s) do outro? E como sobreviver a isso?
O Odor do Sangue também não é, entenda-se, um filme ingenuamente “libertário”. O que Martone filma confunde-se, em última instância, com o carácter insolúvel de qualquer desejo, sendo Silvia a vítima sacrificial dessa insolubilidade. E se outras razões não houvesse para descobrir este filme, a Silvia composta por Fanny Ardant seria suficiente: respeitando as exigências do mais tradicional registo psicológico, a actriz sabe colocar em cena uma transcendência que nenhuma religiosidade, a não ser a do corpo, consegue exprimir.
* Post inclui partes de um texto publicado na revista "6ª" / Diário de Notícias (5 Jan.).
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