'A Fase Seguinte' - conto publicado na revista "6ª", Diário de Notícias (5 Jan.)
A minha fase David Bowie começou a 18 de Julho de 1983, quando a revista Time lhe dedicou uma capa. O artigo, assinado por Jay Cocks, chamava-se "David Bowie rockets onward" e celebrava o seu regresso à estrada, capitalizando o sucesso do álbum Let's Dance. Na capa, o rosto desenhado emergia como uma mancha feliz de luz intensa e exuberantes contrastes, tendo como fundo os pontos coloridos dos espectadores num estádio cheio e, adivinhava-se, eufórico.
Foi a primeira vez que reparei que os dois olhos de Bowie são diferentes. Aliás, a descoberta começou por me parecer algo inconsistente, atribuindo a diferença a um qualquer efeito irónico do ilustrador. Em todo o caso, decidi confirmar. Através de fotografias e, sobretudo, de relatos que nunca tinha lido, verifiquei que, de facto, Bowie tem os olhos diferentes. Fiquei mesmo a saber que se trata, não de uma condição congénita, mas do resultado de uma luta, por causa de uma namorada, com um colega de escola de nome George Underwood. Ao repelir Bowie, Underwood agrediu-o no rosto, de tal modo que o seu anel acertou no olho esquerdo de Bowie, obrigando-o a um tratamento de oito meses para o salvar de uma muito provável perda de visão. Os médicos conseguiram resolver o problema, mas a pupila ficou para sempre dilatada. Bowie tem, por isso, uma deficiente percepção da profundidade no olho esquerdo e, segundo a sua própria descrição, algumas limitações na detecção das cores, sentindo sempre um tom acastanhado a sobrepor-se a todas as superfícies. Nada disso impediu que os dois colegas mantivessem a sua relação de amizade. Alguns anos mais tarde, Underwood, um artista plástico, acabaria mesmo por desenhar capas para álbuns de Bowie, nomeadamente Hunky Dory, de 1971. A diferença dos olhos está lá, mas eu nunca tinha reparado.
Comecei a minha tarefa com guache. Era obviamente provisório, mas o guache pareceu-me um bom material de ensaio. Rapidamente compreendi que a solução da tinta não podia ser demasiado aguada, já que o simples movimento das pálpebras limparia a cor a aplicar sobre a pupila do meu olho esquerdo. Fabriquei, então, uma papa azulada e, com um pincel muito fino, observando-me num espelho, tentei aplicar a tinta em círculo à volta da pupila. Não conseguia, no entanto, manter os dois olhos abertos o tempo suficiente para concluir a minha tarefa. E tinham que ser os dois abertos em simultâneo, já que o fecho do olho direito implicava que o esquerdo não se abrisse o suficiente.
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