segunda-feira, janeiro 29, 2007

A última tentação de Madonna

Madonna numa cruz? Sim. Mas não como a maior parte da informação nos (não) disse. Ou seja: o célebre quadro da "crucificação", de The Confessions Tour, está muito longe de poder corresponder àquilo a que o jornalismo de "escândalos" ou de pura má fé (vai dar ao mesmo) o reduziu. Não se trata, de facto, de uma "brincadeira" com a iconografia cristã (e mesmo que o fosse, o gesto artístico seria a sua própria legitimação). Desde logo, porque Madonna se expõe numa cruz, não a mimar seja o que for, mas a cantar Live to Tell, tema religioso entre todos os que já interpretou — nele se proclama, muito candidamente, o carácter sagrado da beleza, a par da especificidade do universo feminino. Depois, porque ela não contorna a derradeira tentação a que a performance musical pode conduzir: canta, afinal, como quem convoca os destinos do mundo, sublinhando as evidências mais frias e menos cómodas — neste caso, a existência de 12 milhões de órfãos da sida, em África. E isso é apenas o princípio de um quadro de complexa encenação em que se colocam em cena (e, literalmente, se enlaçam) símbolos hebraicos e muçulmanos.
Em todo o caso, não menosprezemos a energia criativa desta Material Woman. Live to Tell é apenas um dos 21 temas de um alinhamento em que, de uma só vez, se reinventa o espectáculo de palco e se transfigura o conceito tradicional de "filme-concerto". De novo com a cumplicidade do realizador sueco Jonas Akerlund, Madonna revisita-nos, agora, com o DVD de The Confessions Tour, disponível em edição especial com um CD paralelo de 13 canções da digressão (lançamento oficial: hoje). Dizer que se trata da transcrição de um fabuloso espectáculo é escasso — estamos, afinal, perante uma admirável fusão de registos de espectáculo, do concerto ao vivo ao teledisco, tudo desembocando naquilo que é, em última instância, um singular objecto de cinema. I have a tale to tell...