Face aos conteúdos de algumas zonas da Internet sobre filmes e cinema, podemos verificar que muitas intervenções do "público" se esgotam na procura de uma divisão bélica. E num sentido que dispensa qualquer agilidade de pensamento: deixou de ser importante afirmar uma diferença — através de ideias, argumentos, certezas e dúvidas, sentimentos e emoções —, para passar a valorizar-se a "destruição" de quem, eventualmente, possui outra diferença para afirmar. Na prática, gera-se o mais primitivo dos efeitos tribais: quem não está na tribo (dos que admiram um determinado filme) só pode ser insultado e ridicularizado ou, na melhor das hipóteses, tratado como um pobre ignorante. E só por distracção se poderá julgar que esta descrição de alguns dos costumes dos nossos tempos é excessiva — bem pelo contrário, se tal descrição peca por alguma coisa, é por defeito.
Parece haver mesmo filmes que favorecem esse efeito tribal. Vimos o caso recente de Borat. Mas há outros exemplos, também recentes, como V de Vingança (2006) ou, um pouco mais recuados, como Matrix (1999). Ora, não pretendo sugerir que tal efeito tem a ver com filmes que pouco me interessam — é verdade que não me sinto nada tocado por V de Vingança, mas considero Matrix uma das obras-primas a encerrar simbolicamente o final do século XX. Acontece que nunca me passaria pela cabeça tentar reduzir seja quem for a "preconceituoso", "estúpido" ou "atrasado mental" apenas porque se mostra distante de algo que admiro (por exemplo, considero Gabrielle, de Patrice Chéreau, uma das maiores proezas do ano cinematográfico e nada me move contra quem — e são muitos — se mostra indiferente ou mesmo agastado pela pesquisa formal de Chéreau).
O que se passa é que essa pueril guerra de "exclusões" é o passatempo banal de muitos espectadores que se exprimem na Net, a maior parte das vezes visando uma entidade monstruosa a que, por desconhecimento ou desprezo, decidiram dar o nome de "crítica". No fundo, não conseguem compreender que a crítica (melhor ou pior) é feita de textos, ideias, pensamentos e perplexidades — e não dessa coisa divertida, mas superficial e arbitrária, que são as estrelinhas que se atribuem aos filmes. Mais do que isso: essa lógica tribal pode definir tudo o que se quiser (inclusivé uma sensibilidade geracional que importa conhecer), mas nada tem a ver com cinefilia e nobreza cinéfila.
A cinefilia não nasce da vontade de excluir os outros espectadores. Aliás, não começa em nenhuma dinâmica de grupo, mas num gosto obsessivo pela vida das formas e pela sua constante interacção. Aliás, se recuarmos aos patronos da cinefilia moderna — os autores da Nova Vaga francesa (Godard, Truffaut, Rohmer, Rivette, Chabrol, etc.), mas também o seu mentor teórico e moral, André Bazin —, podemos observar que a sua paixão pelo cinema define fronteiras, por vezes radicais, mas não funciona a partir de qualquer bloqueamento tendencioso. Trata-se mesmo de uma postura em constante e ansiosa abertura para muitos outros domínios da cultura — entendendo-se, aqui, cultura não como mera acumulação enciclopédica de saberes, mas sim como vontade de relação com todas as formas de todas as áreas, a começar pela literatura. É verdade: o cinéfilo não é apenas aquele que "gosta" de filmes. Num certo sentido, a sua relação com os filmes existe gerada pelo gosto dos livros e da literatura. Ou ainda: pela escrita como paixão fundadora de todas as formas de apreensão/reconversão/imaginação do mundo.
Antoine Doinel, o alter ego cinematográfico de François Truffaut, interpretado por Jean-Pierre Léaud, é aquele que, na entrada de uma sala de cinema, rouba uma fotografia de um filme de Ingmar Bergman que o fascinou (Mónica e o Desejo), mas também um leitor encantado de Balzac — está tudo em Os 400 Golpes (1959), um bom filme para começarmos a ser cinéfilos em vez de gastarmos tempo precioso a insultar o parceiro do lado.
Parece haver mesmo filmes que favorecem esse efeito tribal. Vimos o caso recente de Borat. Mas há outros exemplos, também recentes, como V de Vingança (2006) ou, um pouco mais recuados, como Matrix (1999). Ora, não pretendo sugerir que tal efeito tem a ver com filmes que pouco me interessam — é verdade que não me sinto nada tocado por V de Vingança, mas considero Matrix uma das obras-primas a encerrar simbolicamente o final do século XX. Acontece que nunca me passaria pela cabeça tentar reduzir seja quem for a "preconceituoso", "estúpido" ou "atrasado mental" apenas porque se mostra distante de algo que admiro (por exemplo, considero Gabrielle, de Patrice Chéreau, uma das maiores proezas do ano cinematográfico e nada me move contra quem — e são muitos — se mostra indiferente ou mesmo agastado pela pesquisa formal de Chéreau).
O que se passa é que essa pueril guerra de "exclusões" é o passatempo banal de muitos espectadores que se exprimem na Net, a maior parte das vezes visando uma entidade monstruosa a que, por desconhecimento ou desprezo, decidiram dar o nome de "crítica". No fundo, não conseguem compreender que a crítica (melhor ou pior) é feita de textos, ideias, pensamentos e perplexidades — e não dessa coisa divertida, mas superficial e arbitrária, que são as estrelinhas que se atribuem aos filmes. Mais do que isso: essa lógica tribal pode definir tudo o que se quiser (inclusivé uma sensibilidade geracional que importa conhecer), mas nada tem a ver com cinefilia e nobreza cinéfila.
A cinefilia não nasce da vontade de excluir os outros espectadores. Aliás, não começa em nenhuma dinâmica de grupo, mas num gosto obsessivo pela vida das formas e pela sua constante interacção. Aliás, se recuarmos aos patronos da cinefilia moderna — os autores da Nova Vaga francesa (Godard, Truffaut, Rohmer, Rivette, Chabrol, etc.), mas também o seu mentor teórico e moral, André Bazin —, podemos observar que a sua paixão pelo cinema define fronteiras, por vezes radicais, mas não funciona a partir de qualquer bloqueamento tendencioso. Trata-se mesmo de uma postura em constante e ansiosa abertura para muitos outros domínios da cultura — entendendo-se, aqui, cultura não como mera acumulação enciclopédica de saberes, mas sim como vontade de relação com todas as formas de todas as áreas, a começar pela literatura. É verdade: o cinéfilo não é apenas aquele que "gosta" de filmes. Num certo sentido, a sua relação com os filmes existe gerada pelo gosto dos livros e da literatura. Ou ainda: pela escrita como paixão fundadora de todas as formas de apreensão/reconversão/imaginação do mundo.
Antoine Doinel, o alter ego cinematográfico de François Truffaut, interpretado por Jean-Pierre Léaud, é aquele que, na entrada de uma sala de cinema, rouba uma fotografia de um filme de Ingmar Bergman que o fascinou (Mónica e o Desejo), mas também um leitor encantado de Balzac — está tudo em Os 400 Golpes (1959), um bom filme para começarmos a ser cinéfilos em vez de gastarmos tempo precioso a insultar o parceiro do lado.