1ª verdade objectiva: não tenho uma visão positiva de Borat e, com talento ou sem ele, tentei esclarecer as minhas reticências ao filme num texto na revista “6ª”, do Diário de Notícias, e numa nota no Cinema2000 (uma coisa e outra podem ler-se aqui).
2ª verdade objectiva: alguns argumentos contrários sobre Borat — e, especificamente, contrários ao meu ponto de vista — partem de um digest abusivo daquilo que foi escrito, em última instância tentando exigir que quem é visado se “defenda” a partir de coisas que nunca foram ditas (e, mesmo que tivessem sido ditas, como responder à avalancha de insultos que é ponto de desonra de alguns sites?).
1º exemplo paralelo: o imenso respeito que me suscita a pessoa e a obra de Manoel de Oliveira não é incompatível com o facto de, por várias vezes, ter manifestado resistências muito fundas a alguns dos seus filmes (O Meu Caso, Non ou a Vã Glória de Mandar, A Carta, etc.). Ainda assim, desde que defendi Amor de Perdição como um dos grandes filmes de toda a história do cinema português, continuo a encontrar pessoas, muitas do meio jornalístico, que me interpelam como se eu fosse uma espécie de militante cego do seu trabalho (e podia ser de outra pessoa qualquer) — parecendo que não, Amor de Perdição foi há 28 anos, ainda não tinham nascido alguns dos que, agora, parecem conhecer todas as linhas que escrevi seja sobre que assunto for.
3ª verdade objectiva: nunca escrevi: “O cinema morreu”.
*****
1. Em Portugal, a degradação do diálogo e do gosto de pensar provocam, todos os dias, atropelos do género: diz-se ou escreve-se uma coisa e, de imediato, brotam polícias que nos exigem que prestemos contas pelo que nunca dissemos nem escrevemos. Na origem de tais equívocos estão, como é óbvio, no mínimo, atitudes de má fé. Já muitos foram alvo de tais processos e não serei eu a tentar assumir o papel de “vítima” indefesa e solitária. Não se trata, sequer, de um problema de vitimação — trata-se, isso sim, do simples exercício da legitimidade de pensar, recusando liminarmente as práticas de terrorismo intelectual.
2. No caso do cinema, semelhante estado de coisas atingiu proporções alarmantes. Não porque os críticos de cinema (ou, em boa verdade, seja quem for) devam ser poupados a discussões de ideias e confrontos de argumentos. Antes porque — em parte por indução de alguns “divertimentos” televisivos, em parte através da cultura da irresponsabilidade que domina muitas zonas da Net — o discurso jocoso, procurando a ofensa pessoal e (insisto nas palavras) o terrorismo intelectual passou a ser “norma” de uma cultura da indigência, sempre pronta a favorecer o menosprezo pelo pensamento das formas e, no limite, a repelir qualquer conceito de dignidade humana.
3. Escrevi: “Provavelmente, o cinema está a morrer.” E basta tê-lo escrito para que seja rasurado o respectivo contexto e, mais do que isso, para se resumir de forma asséptica o que (mal ou bem) tem a consistência própria de um pensamento: segundo o simplismo triunfante dos tempos que vivemos, eu teria escrito tão só que o cinema morreu porque Borat o matou, ou está a matar... É bom que se diga, então, que as raízes históricas e simbólicas de tal pensamento estão muito antes de Borat. E nem sequer estou a solicitar que me permitam esclarecê-lo a posteriori. Nada disso. Estava também escrito que “nos últimos 40 anos” se tem vindo a decompor tudo aquilo que definiu “a identidade técnica, formal, cultural e económica do cinema”. E mais: era também referido que alguns “grandes cineastas” (Godard, Sokurov, Haneke) “trabalham a partir de um radical luto cinematográfico”. Daí o desenvolvimento que, a seguir, eu propunha: a visão de Borat como um sucedâneo banal do burlesco, na verdade colado ao gratuito moral dos apanhados televisivos, admitindo a hipótese de essa contaminação televisiva ser mais um profundo golpe no cinema enquanto linguagem específica. Tudo isto é, certamente, muito discutível (como discutível é TUDO aquilo que escrevo) — mas reduzir a sua formulação à ideia de que me coloco na posição de juiz que vem condenar Borat por ter morto o cinema é uma atitude de ignóbil infantilismo.
2º exemplo paralelo (em boa verdade, não é um exemplo, mas a constatação de uma tendência): repare-se como uns bons 90 por cento do que se escreve na Net a pretexto da crítica de cinema não decorre daquilo que, realmente, se escreve, mas apenas de raciocínios do género: “Fulano de tal deu bola preta (ou 5 estrelas) a um filme que eu adoro (ou detesto), logo é uma besta”... Aliás, há muito boa gente que reconhece olhar para as estrelinhas, não ler uma única linha dos textos críticos, ostentando, ao mesmo tempo, um saber "científico" sobre tudo o que se passa na área da crítica. E nem sequer estou a fazer ironia com o exemplo citado — aliás, a formulação só peca por pudor, já que a avalancha de insultos se tornou a regra triunfante deste muito cultivado ódio ao pensamento.
4. Vive-se, hoje em dia, uma crise profunda na percepção/recepção do pensamento crítico (a que, como é óbvio, os próprios críticos não serão estranhos). Não é entenda-se, uma crise por causa de “bons” ou “maus” críticos — o crítico “certo” para um espectador será sempre o crítico “errado” para o espectador do lado. E só quem queira menosprezar a sua própria inteligência poderá querer (ou crer) que o exercício da crítica, no cinema ou em qualquer outra área, funcione como uma verdade evangélica. É uma crise que se liga com a indiferença dominante pela contradição, pela criatividade como dinâmica de contradições, pela pluralidade dos filmes e da vida. É, acima de tudo, uma crise cultural que promove a infantilização generalizada de olhares e comportamentos. E é sempre triste descobrir que há espectadores que não querem pensar a SUA relação com os filmes, preferindo viver o cinema como um exercício de fanatismo clubista. Nesse sentido, é a cinefilia (não o cinema) que está a morrer.
2ª verdade objectiva: alguns argumentos contrários sobre Borat — e, especificamente, contrários ao meu ponto de vista — partem de um digest abusivo daquilo que foi escrito, em última instância tentando exigir que quem é visado se “defenda” a partir de coisas que nunca foram ditas (e, mesmo que tivessem sido ditas, como responder à avalancha de insultos que é ponto de desonra de alguns sites?).
1º exemplo paralelo: o imenso respeito que me suscita a pessoa e a obra de Manoel de Oliveira não é incompatível com o facto de, por várias vezes, ter manifestado resistências muito fundas a alguns dos seus filmes (O Meu Caso, Non ou a Vã Glória de Mandar, A Carta, etc.). Ainda assim, desde que defendi Amor de Perdição como um dos grandes filmes de toda a história do cinema português, continuo a encontrar pessoas, muitas do meio jornalístico, que me interpelam como se eu fosse uma espécie de militante cego do seu trabalho (e podia ser de outra pessoa qualquer) — parecendo que não, Amor de Perdição foi há 28 anos, ainda não tinham nascido alguns dos que, agora, parecem conhecer todas as linhas que escrevi seja sobre que assunto for.
3ª verdade objectiva: nunca escrevi: “O cinema morreu”.
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1. Em Portugal, a degradação do diálogo e do gosto de pensar provocam, todos os dias, atropelos do género: diz-se ou escreve-se uma coisa e, de imediato, brotam polícias que nos exigem que prestemos contas pelo que nunca dissemos nem escrevemos. Na origem de tais equívocos estão, como é óbvio, no mínimo, atitudes de má fé. Já muitos foram alvo de tais processos e não serei eu a tentar assumir o papel de “vítima” indefesa e solitária. Não se trata, sequer, de um problema de vitimação — trata-se, isso sim, do simples exercício da legitimidade de pensar, recusando liminarmente as práticas de terrorismo intelectual.
2. No caso do cinema, semelhante estado de coisas atingiu proporções alarmantes. Não porque os críticos de cinema (ou, em boa verdade, seja quem for) devam ser poupados a discussões de ideias e confrontos de argumentos. Antes porque — em parte por indução de alguns “divertimentos” televisivos, em parte através da cultura da irresponsabilidade que domina muitas zonas da Net — o discurso jocoso, procurando a ofensa pessoal e (insisto nas palavras) o terrorismo intelectual passou a ser “norma” de uma cultura da indigência, sempre pronta a favorecer o menosprezo pelo pensamento das formas e, no limite, a repelir qualquer conceito de dignidade humana.
3. Escrevi: “Provavelmente, o cinema está a morrer.” E basta tê-lo escrito para que seja rasurado o respectivo contexto e, mais do que isso, para se resumir de forma asséptica o que (mal ou bem) tem a consistência própria de um pensamento: segundo o simplismo triunfante dos tempos que vivemos, eu teria escrito tão só que o cinema morreu porque Borat o matou, ou está a matar... É bom que se diga, então, que as raízes históricas e simbólicas de tal pensamento estão muito antes de Borat. E nem sequer estou a solicitar que me permitam esclarecê-lo a posteriori. Nada disso. Estava também escrito que “nos últimos 40 anos” se tem vindo a decompor tudo aquilo que definiu “a identidade técnica, formal, cultural e económica do cinema”. E mais: era também referido que alguns “grandes cineastas” (Godard, Sokurov, Haneke) “trabalham a partir de um radical luto cinematográfico”. Daí o desenvolvimento que, a seguir, eu propunha: a visão de Borat como um sucedâneo banal do burlesco, na verdade colado ao gratuito moral dos apanhados televisivos, admitindo a hipótese de essa contaminação televisiva ser mais um profundo golpe no cinema enquanto linguagem específica. Tudo isto é, certamente, muito discutível (como discutível é TUDO aquilo que escrevo) — mas reduzir a sua formulação à ideia de que me coloco na posição de juiz que vem condenar Borat por ter morto o cinema é uma atitude de ignóbil infantilismo.
2º exemplo paralelo (em boa verdade, não é um exemplo, mas a constatação de uma tendência): repare-se como uns bons 90 por cento do que se escreve na Net a pretexto da crítica de cinema não decorre daquilo que, realmente, se escreve, mas apenas de raciocínios do género: “Fulano de tal deu bola preta (ou 5 estrelas) a um filme que eu adoro (ou detesto), logo é uma besta”... Aliás, há muito boa gente que reconhece olhar para as estrelinhas, não ler uma única linha dos textos críticos, ostentando, ao mesmo tempo, um saber "científico" sobre tudo o que se passa na área da crítica. E nem sequer estou a fazer ironia com o exemplo citado — aliás, a formulação só peca por pudor, já que a avalancha de insultos se tornou a regra triunfante deste muito cultivado ódio ao pensamento.
4. Vive-se, hoje em dia, uma crise profunda na percepção/recepção do pensamento crítico (a que, como é óbvio, os próprios críticos não serão estranhos). Não é entenda-se, uma crise por causa de “bons” ou “maus” críticos — o crítico “certo” para um espectador será sempre o crítico “errado” para o espectador do lado. E só quem queira menosprezar a sua própria inteligência poderá querer (ou crer) que o exercício da crítica, no cinema ou em qualquer outra área, funcione como uma verdade evangélica. É uma crise que se liga com a indiferença dominante pela contradição, pela criatividade como dinâmica de contradições, pela pluralidade dos filmes e da vida. É, acima de tudo, uma crise cultural que promove a infantilização generalizada de olhares e comportamentos. E é sempre triste descobrir que há espectadores que não querem pensar a SUA relação com os filmes, preferindo viver o cinema como um exercício de fanatismo clubista. Nesse sentido, é a cinefilia (não o cinema) que está a morrer.
Ideia em aberto: discutir o que é — ou pode ser — uma cinefilia para o século XXI.