Este é o rosto de Ana Moreira no filme Transe, de Teresa Villaverde — não apenas uma actriz (extraordinária) que encarna uma personagem trágica (Sónia, jovem sugada por uma rede de prostituição que a conduz da Rússia a Portugal, passando por Alemanha e Itália), mas uma verdadeira paisagem humana nascida de uma fabulosa obstinação: a de não ceder, nunca, à pornografia televisiva, a esse bem-estar mediático em que se celebram todas as obscenidades do mundo, afogando esse mesmo mundo na fealdade e no infinito menosprezo por tudo que esteja vivo e seja estranho à estupidez dos estereótipos televisivos. Ana Moreira é, enfim, a matéria viva de algo intratável — o radicalismo de um cinema que não aceita ceder à ditadura dos lugares-comuns e das imagens comuns.
Gotffried Helnwein, "Lebensunwertens Leben" (1979), aguarela em cartão
Acreditar na matéria sem escamotear a fúria que a habita é, afinal, o programa íntimo de muitas formas contemporâneas de arte. Ou ainda: depois da "evidência" fotográfica herdada do século XIX, trata-se agora de não temer a angústia de saber que o real não é transparente nem se oferece à suposta candura dos olhares — tudo é conflito. E uma imagem, cada imagem, é o mapa de uma guerra aberta entre linguagens. Impossível voltar a ser criança.
James Nachtwey, Grozny, Chechénia (1996)
Por isso o mundo nos exige cada vez mais que não o olhemos como se estivéssemos a transcrevê-lo. Não há transcrição possível. Não acreditemos na beatice iconográfica das televisões que nos querem fazer olhar cada imagem como se fosse o oráculo incontestável de uma verdade (que as próprias televisões julgam possuir). Subitamente, compreendemos que para olhar, para realmente ver, é preciso ter amor nos olhos. E isso é sempre o mais difícil.
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