Gottfried Helnwein, "American Prayer" (2000)
Em Paris, no Grand Palais, pode ser vista uma admirável exposição: chama-se "Era uma vez Walt Disney" e dá a ver o trajecto criativo do criador do rato Mickey em íntima ligação com as outras artes. Mais do que isso: mostra também o efeito do universo Disney no trabalho de outros artistas (como Andy Warhol ou Gottfried Helnwein, este aqui exemplificado). As linhas que se seguem pertencem a um artigo publicado na revista «6ª», do Diário de Notícias de 6 de Outubro de 2006.
Sendo a França um dos países europeus tradicionalmente mais resistente à hegemonia cultural dos EUA, não deixa de ser irónico que um dos edifícios mais carregados de simbolismo da zona dos Campos Elíseos – o esplendoroso Grand Palais (em processo de restauro a concluir em 2007) – apresente, agora, uma fascinante exposição dedicada a um dos nomes emblemáticos do entertainment americano: Walt Disney.
Não que haja qualquer contradição grave nesta opção. Bem pelo contrário: a exposição – “Era uma vez Walt Disney – na origem da arte dos estúdios Disney” (inaugurada a 16 de Setembro e patente até 15 de Janeiro de 2007) – é um magnífico exemplo de uma visão aberta e descomplexada de um dos maiores visionários do cinema e, em particular, das suas relações com as outras artes. Seja como for, é um facto que Disney foi (e continua a ser) um criador frequentemente menosprezado tanto pelo seu “americanismo” como pela sua ligação a produtos “infantis”.
Aliás, os organizadores da exposição terão sido os primeiros a sentir o peso dessa herança preconceituosa em torno do criador do rato Mickey e do pato Donald. No artigo de abertura do catálogo da exposição, intitulado com uma sintomática interrogação – “Walt Disney no museu?” –, o respectivo comissário geral, Bruno Girveau, começa mesmo por uma esclarecedora evocação: “Se a pergunta se coloca logo a abrir, isso deve-se ao facto de o projecto desta exposição ter sido por vezes acolhido com um sorriso perplexo. Na verdade, como explicar a entrada de Walt Disney (1901-1966) e da sua corte de personagens, de Mickey a Mowgli, num Grand Palais onde, nos últimos quarenta anos, foram celebrados mestres incontestados como Nicolas Poussin, Édouard Manet ou Pablo Picasso?”
(...)A exposição do Grand Palais propõe um fantástico ziguezague de memórias e referências, incluindo algumas surpreendentes citações cinematográficas, desde o pioneiro Winsor McCay (Little Nemo, 1909) até James Whale (Frankenstein, 1931) ou Charles Chaplin (Tempos Modernos, 1936). Mas é face à pintura e á gravura que o universo de Disney exibe marcas de uma espantosa contaminação temática e estética. Assim, por exemplo, a influência de ilustradores dos séculos XIX-XX como o francês Gustave Doré, o alemão Heinrich Kley ou a inglesa Beatrix Potter são fundamentais para o antromorfismo de muitas personagens animadas criadas pelos estúdios Disney.
O itinerário da exposição termina numa sala onde é possível descobrir alguns trabalhos, sobretudo pinturas da Pop Art, que, por assim dizer, invertem a démarche de Disney: são exemplos de criadores (Andy Warhol, Peter Saul, David Mach, etc.) que encontraram nos seus filmes algumas fontes de inspiração para as mais admiráveis transfigurações. Dir-se-ia que se consuma, assim, a lógica de uma arte que apostou em reunir os valores patrimoniais ao gosto militante da experimentação e do espectáculo.