sábado, novembro 12, 2022

De Fassbinder a Ozon [2/2]

Denis Ménochet pega fogo à imagem de Khalil Gharbia

Através do magnífico Peter von Kant, o francês François Ozon reencontra a herança da obra do alemão Rainer Werner Fassbinder: este é um filme capaz de celebrar o artifício do cinema a partir de uma herança visceralmente teatral — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 outubro), com o título 'Recriando a herança das lágrimas amargas'.

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Ozon está também a evocar a própria filmografia, já que uma das suas primeiras longas-metragens, Gotas de Água sobre Pedras Escaldantes (2000), se baseia numa peça de Fassbinder, igualmente construída em torno da relação de dois homens com grande diferença de idades. Tal proximidade está longe de ser apenas “temática”, sendo sobretudo conceptual e figurativa. Num caso como noutro, a assumida teatralidade do cenário acaba por se confundir com um ambíguo gesto nostálgico: Peter von Kant é um filme apostado em redescobrir as delícias de um cinema enraizado nos artifícios do estúdio — tudo, mas mesmo tudo, do impecável rigor geométrico do espaço até às mais simples manifestações naturais (a neve a cair lá fora…), é tratado através da sensualidade de tais artifícios.
Como sempre em Ozon, a vibração do drama (ou da comédia) envolve um minucioso trabalho com os actores, a começar, claro, no papel de Peter, por esse gigante do cinema francês que é Denis Ménochet (vimo-lo, por exemplo, em Custódia Partilhada, produção de 2017 assinada por Xavier Legrand) e Khalil Gharbia, representando o misto de ironia e insolência que define o “fantasma” romântico que é Amir. Sem esquecer, claro, Stefan Crepon, interpretando com minuciosa contenção o silêncio e a mágoa do abusado Karl.
O contraponto das actrizes é tanto mais importante quanto, para lá do seu talento, “transportam” memórias vitais. Hanna Schygulla, no papel da mãe de Peter, é uma “mensageira” de muitas emoções cinéfilas — participou em mais de duas dezenas de títulos de Fassbinder, incluindo As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. Interpretando Sidonie, Isabelle Adjani reencontra algo da dimensão mitológica do seu lugar na história do cinema francês — a sua composição em A História de Adèle H. (1975), de François Truffaut, poderá servir de memória simbólica, até porque Ozon é um legítimo herdeiro do gosto romanesco de Truffaut.
Para que as memórias reencontrem a sua utópica harmonia, vale a pena recordar que a canção que Peter escuta nos momentos iniciais do filme — Jeder tötet was er liebt, interpretada por Sidonie/Adjani — foi composta por Peer Raben, a partir de um poema Oscar Wilde, para a banda sonora do título final de Fassbinder, Querelle (1982), onde é cantada por Jeanne Moreau. E também que o quadro Midas e Baco (c. 1630), de Nicolas Poussin, que domina o espaço em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, reaparece numa parede do apartamento de Peter von Kant.
NICOLAS POUSSIN
Midas e Baco
(c.1630)