sexta-feira, setembro 30, 2022

Ser ou não ser David Bowie

David Bowie revisto e reinventado por um filme invulgar

Infelizmente, Moonage Daydream só esteve uma semana em exibição. Foi no ecrã gigante que pudemos descobrir esse admirável trabalho sobre David Bowie: mais do que um documentário biográfico, estamos perante uma experiência “imersiva” capaz de revalorizar a magia primitiva do espectáculo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 setembro).

Foi um dos grandes acontecimentos do último Festival de Cannes (extra-competição) e ficará, por certo, como um dos filmes fulcrais de 2022: Moonage Daydream, de Brett Morgen, está [esteve] a partir de hoje [dia 15], e durante uma semana, em salas IMAX. O retrato épico de David Bowie (1947-2016) suscita também várias edições das respectivas canções: a banda sonora estará disponível em formato digital a partir de amanhã [dia 16]; em duplo CD surgirá no dia 18 de novembro; e em triplo LP no início de 2023.
Este calendário poderá suscitar a ideia equívoca de que se trata do registo de um concerto, porventura inédito, “multiplicado” pelas respectivas variações discográficas. De facto, não é disso que se trata, mas sim de uma visão do criador de Life on Mars? que tem tanto de antologia como de reinvenção formal.
Também não estamos perante uma lógica de reportagem, por exemplo à maneira do clássico Dont Look Back (1967), de D. A. Pennebaker, sobre a lendária digressão britânica de Bob Dylan, em 1965. Seja como for, é um facto que Moonage Daydream integra diversos materiais da “Zigg Stardust Tour” (1972-73), provenientes sobretudo do filme Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, também assinado por Pennebaker, dedicado ao derradeiro concerto dessa digressão, realizado a 3 de julho de 1973 no Hammersmith Odeon de Londres.

Camaleão?

De que se trata, então? Por uma vez, podemos dizer que a promoção de um filme sabe ser fiel ao seu “espírito”. Quando no respectivo trailer se diz que se trata de uma experiência “imersiva”, só podemos concordar: o espectador é convocado, não para uma “playlist” de sucessos, mas sim para uma viagem através do mundo de Bowie, algures entre o real e o imaginário — ou num território que está para lá da sua mecânica oposição.
O título do filme retoma o título de uma canção de Bowie, precisamente do álbum The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972). Nela se apresenta a personagem central da fábula de ficção científica que o álbum propõe: Ziggy Stardust, figura alienígena, símbolo visceral da energia do rock, está no nosso planeta para nos salvar do apocalipse… Além do mais, distinguindo-se por uma identidade festivamente ambígua — ou como se diz num dos versos, anunciando a chega de Ziggy: “I'm a mama-papa comin' for you”.
Claro que Ziggy, o seu álbum e as suas performances estão muito longe de esgotar o esplendor dos 140 minutos da realização de Morgen. Em todo o caso, a sua escolha como “capítulo zero” do próprio filme não tem nada de arbitrário, ajudando o espectador a resistir ao rótulo convencional (ainda que elogioso) do poder “camaleónico” de Bowie. Na verdade, o camaleão muda de cor para se confundir com o cenário em que se movimenta, no limite desaparecendo. Ora, Bowie sempre foi o rigoroso contrário disso mesmo: um artista que soube cultivar a ousadia de novas formas e diferentes performances, emergindo como “coisa” diferente em qualquer cenário.
Moonage Daydream consegue, assim, algo de raro e precioso, superando as fronteiras tradicionais de um registo que, para todos os efeitos, tem o seu quê de biográfico — é mesmo, oficialmente, o primeiro documentário dedicado a Bowie produzido com autorização dos herdeiros e gestores do seu património artístico.

Brett Morgen
Vida e morte

Pormenor sintomático: não encontramos, aqui, uma daqueles vozes off mais ou menos “descritivas”, redundantes e monótonas, que acabam por reduzir os materiais de arquivo a lugares-comuns “enciclopédicos”. O efeito imersivo provém de uma lógica narrativa que, não sendo temporalmente linear, também não tem nada de arbitrário. Deambulamos, por exemplo, dos álbuns berlinenses de Bowie no final da década de 1970 (Low, “Heroes” e Lodger) para o seu envolvimento com o cinema, o teatro e a pintura, sem que isso nos faça perder o essencial: o génio de um criador em permanente reavaliação crítica da sua identidade — ser ou não ser, eis a questão.
Na trajectória de Morgen, Moonage Daydream é, claramente, um objecto cúmplice do seu Cobain: Montage of Heck (2015), retrato de Kurt Cobain (1967-1994) em que as memórias musicais dos Nirvana se cruzam com muitos desenhos e documentos inéditos. Segundo o próprio realizador, em entrevista à BBC (por altura da passagem do filme em Cannes), durante o seu trabalho de cinco anos teve acesso a nada mais nada menos que cinco milhões de “documentos” (“assets”) directa ou indirectamente relacionados com a obra e a personalidade de Bowie.
Tal envolvimento não é alheio às convulsões da sua vida pessoal. Desde logo, porque a paixão pela música de Bowie começou na adolescência — Morgen nasceu em Los Angeles, em 1968. Depois, porque quando estava a começar a trabalhar em Moonage Daydream sofreu um violento ataque cardíaco que, como ele sublinha, o levou a repensar toda a sua existência e a herança que poderia deixar aos seus três filhos: “Precisei de aprender a viver outra vez e foi nessa altura, aos 47 anos, que David Bowie, realmente, voltou a entrar na minha vida.”