sexta-feira, setembro 23, 2022

Hitchcock em grande plano

James Stewart filmado por Hitchcock:
o grande plano "é como a música"

Quando vemos um rosto em grande plano, algo muda na nossa relação com o ecrã: o cinema descobriu isso muito antes das “selfies” do Instagram — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 agosto).

Um velho e persistente lugar-comum sugere que as imagens de rostos em grande plano são uma marca específica da televisão. Mais ainda: cada vez que um rosto enche o nosso ecrã caseiro, isso significaria que estabelecemos um elo privilegiado de “intimidade” com a pessoa (ou personagem) representada.
Alfred Hitchcock
Além de dispensar qualquer reflexão sobre cada contexto de comunicação, tal caracterização reflecte uma cândida ignorância da história do cinema, dos pioneiros do mudo, há mais de um século, até à nossa actualidade — de David W. Griffith a David Lynch ou Martin Scorsese. Mas não há dúvida que a celebração dos grandes planos televisivos é sintomática de uma convenção de linguagem que aplicamos de modo mecânico, ao mesmo tempo que a vamos mantendo afastada do nosso pensamento. Que convenção é essa? Pois bem, a que resulta da associação do grande plano ao olhar directo (entenda-se: directamente para nós) da pessoa televisiva que surge no ecrã — aceitamos e, num certo sentido, agradecemos que essa pessoa esteja a falar para nós quando, de facto, não só não nos vê como está “apenas” a contemplar o olho frio de uma câmara.
Como é óbvio, não se trata de classificar quem está no ecrã em função de uma oposição simplista de “verdade” e “mentira”. As considerações do parágrafo anterior são apenas evidências de La Palice que nos podem ajudar a perceber a desvalorização, ou melhor, o esvaziamento dos olhares em que todos os dias, melhor ou pior, desempenhamos os papéis de espectadores ou agentes do espectáculo.
Basta observarmos 99,9% dos videos que cidadãos comuns (qualquer um de nós…) colocam no YouTube ou muitas das “selfies” do Instagram. Que acontece? Alguém se expõe em grande plano, olhando para quem está do lado de cá (eu, tu, ele…), utilizando o olhar como se fosse um instrumento automático, porventura neutro, de transmissão, sem sobressaltos nem ambiguidades.
Há outra maneira de dizer isto: a maior parte dos olhares que trocamos passou a ser mediada por algum tipo de ecrã. Essa mediação deixou de ser pensada como sistema que condiciona quase todas as relações humanas, para passar a ser reconhecida — e, mais do que isso, aplicada — como elemento “natural” dessas mesmas relações. Em boa verdade, a proliferação de comunicações Zoom ou Skype, favorecida pelo contexto pandémico, não passou do reforço de um modelo de relação consolidado ao logo de algumas décadas de vida no mundo virtual.
O cinema (enfim, algum cinema…) e a televisão (uma pequena parte) continuam a não desistir de explorar as muitas e fascinantes ambivalências dessa “proximidade” em grande plano que as imagens podem conter. Para ficar por um belíssimo simbolismo feminino, exterior a qualquer militância feminista, lembro dois pares de exemplos que, curiosamente, resultam de adaptações de romances escritos por mulheres. Penso, antes do mais, nos filmes Uma Paixão Simples (2020), de Danielle Arbid, e O Acontecimento (2021), de Audrey Diwan, inspirados nos livros de Annie Ernaux; e depois nas séries Normal People (2020) e Conversations with Friends (2022), a partir de obras de Sally Rooney (os filmes estão nos canais TVCine, as séries na plataforma HBO Max).
A impressionante multiplicação de grandes planos em qualquer desses objectos decorre, afinal, de uma herança que teve em Alfred Hitchcock (1899-1980) um dos seus génios criativos. Num livro de entrevistas com grandes nomes da “idade de ouro” de Hollywood, promovidas pelo American Film Institute (coligidas em 2006 por George Stevens Jr.), Hitchcock lembrava a importância de pensar e aplicar o grande plano, não como uma banal “ampliação” da personagem, como acontece de modo simplista e redundante em qualquer telenovela, mas sim como um elemento narrativo que estabelece algum tipo de relação com o plano que o precede.
Usando uma deliciosa metáfora a propósito da cena da morte do detective (Martin Balsam) em Psico (1960), Hitchcock dizia que o grande plano “é como a música — não vale a pena usar o som vibrante de um instrumento de sopro antes de precisarmos dele.” Trata-se de um metódico jogo de contrastes: “A enorme cabeça [da personagem] não tem impacto, a não ser que o plano anterior tenha sido muito mais distante.”
Por vezes, Hitchcock aplica o seu método a objectos — exemplo emblemático será a carteira de fósforos de Cary Grant em Intriga Internacional (1959). Mas quase sempre trata-se de colocar em cena o rosto humano como uma paisagem de inusitadas, porventura indecifráveis, significações. Lembremos o misto de beleza e nobreza dos olhos azuis de James Stewart, um dos actores “fetiche” de Hitchcock. Numa cena num mercado de rua, em Marraqueche, o actor aproxima-se do homem (Daniel Gélin) que acabou de ser apunhalado nas costas; apesar de agonizante, ele poderá dar-lhe uma informação vital: os olhos de James Stewart envolvem a certeza de que ficou a saber mais do que sabia, mesmo se esse é um saber imperfeito, paradoxal, porventura perigoso — foi em 1956 e o filme chama-se O Homem que Sabia Demais.