terça-feira, agosto 09, 2022

Brad Pitt ou a paixão do burlesco

Brad Pitt no comboio Tóquio/Kyoto:
comédia em alta velocidade

Subitamente, um grande espectáculo de verão: Brad Pitt comanda Bullet Train: Comboio Bala, aventura japonesa que é também uma das melhores comédias que Hollywood produziu em tempos recentes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 agosto).

Perante a estreia de Bullet Train: Comboio Bala, protagonizado por Brad Pitt, reencontramos uma dúvida: para onde vai o cinema de verão? Ano após ano, a pergunta regressa, concisa e incómoda. E por duas razões fundamentais: primeiro, porque esse cinema está parasitado pelos valores impostos pelo marketing de super-heróis e afins; depois, porque as grandes forças de produção de Hollywood tendem a esquecer a diversidade da sua nobre tradição de “entertainment”, reduzindo o espectáculo a uma rotina de formas e fórmulas cada vez mais entediante.
Se é verdade que não há regra sem excepção… aí está a excepção! Adaptando um livro de Kotaro Isaka, com grande impacto nos mercados japonês e americano, Bullet Train narra as aventuras e desventuras de um assassino contratado que responde (ou é obrigado a responder) pelo nome de código “Ladybug” (à letra: Joaninha). A sua coordenadora envia-o numa viagem no “comboio bala” que liga Tóquio a Kyoto, com a missão de recuperar uma mala que contém uma grande quantidade de dinheiro. No mesmo comboio viajam mais alguns assassinos interessados na mesma mala, directa ou indirectamente ligados à personagem de “Morte Branca”, um sinistro cérebro criminoso…
A sinopse é limitada e limitativa, quanto mais não seja porque ignora o saber (e o sabor) narrativo que perpassa por todos os elementos de Bullet Train. Acontece que estamos perante um objecto que se distingue pela inteligência cénica e cenográfica com que sabe tirar partido do espaço fechado das carruagens — creio que não exagero se disser que uns bons 90% da acção têm lugar no interior do comboio em movimento. Tal “claustrofobia” é tanto mais surpreendente e envolvente quanto surge potenciada como elemento de comédia pelo realizador David Leitch (até agora, o seu título mais interessante era Atomic Blonde, um “thriller” de 2017 protagonizado por Charlize Theron).
Estamos, de facto, perante uma comédia, das mais vertiginosas e surreais que Hollywood produziu nos últimos tempos. O filme sabe convocar toda uma série de clichés ligados à tradição do “thriller” policial para, metodicamente, os decompor em explosões de alegria formal e contagiante gosto do absurdo — tudo pontuado por diálogos de maravilhosa contundência teatral, dir-se-ia desafiando a rapidez do próprio comboio. Como se esta fosse uma “missão impossível” refeita em tom de farsa.
A excelência técnica de tudo isto é incrível — a provar também que há diferenças importantes entre a invenção que aqui encontramos e as rotinas dos chamados efeitos especiais. Sem esquecer que nada disso anula (bem pelo contrário!) a contribuição fundamental dos actores, incluindo Aaron Taylor-Johnson e Brian Tyree Henry, dupla de assassinos que se dão a conhecer pelos nomes de “Tangerina” e “Limão”. Enfim, destaquemos o prodigioso trabalho de Brad Pitt a afirmar-se como legítimo herdeiro de uma tradição que passa por Buster Keaton e Jerry Lewis, oferecendo-nos um “Ladybug” de genuína poesia burlesca.