sexta-feira, julho 29, 2022

John Cassavetes
— elogio do grande plano

John Cassavetes em Love Streams (1984):
autor, actor, revolucionário da história do cinema

O legado de John Cassavetes é indissociável do seu trabalho de actor e com os actores; nessa medida, ele é também um dos grandes autores modernos que soube recriar o próprio conceito de personagem. Os seus filmes em reposição — 'John Cassavetes: o verdadeiro rebelde' — são um dos grandes acontecimentos deste verão cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 julho), com o título 'A condição humana em grande plano'.

Quem nunca sentiu a vibração de um grande plano filmado por John Cassavetes (1929-1989) ainda está, provavelmente, na ante-câmara da história do cinema, iludido pelos ruídos ensurdecedores de super-heróis e outros disparates “juvenis”.
Afinal de contas, trata-se de uma epopeia antiga. Ainda Cassavetes não tinha nascido, já David W. Griffith filmava Lillian Gish em Broken Blossoms/O Lírio Quebrado (1919), oferecendo à posteridade aqueles que são, precisamente, alguns dos primeiros e mais belos grandes planos dessa mesma história do cinema.
A questão está longe de ser um mero problema de escala, isto é, de “proximidade” do rosto humano. Diz o senso comum que, através do grande plano, o cinema conseguiu superar a sua herança teatral, substituindo a abertura fixa do palco por esse contacto muito directo, quase táctil, com o actor ou a actriz. Haverá alguma lógica em tal observação, mas só até certo ponto… Em boa verdade, quando vemos um plano geral do deserto filmado por David Lean em Lawrence da Arábia (1962), ninguém dirá que é como se estivéssemos a assistir a uma peça de teatro.

John & Gena

Antes e depois de começar a realizar os seus próprios filmes, Cassavetes tinha representado alguns papéis que, creio, poderão ajudar a entender melhor a riqueza e complexidade (e também a actualidade) do seu trabalho como cineasta. Lembremos o misto de rudeza, mistério e vulnerabilidade das suas presenças em dois filmes de Don Siegel: Juventude em Perigo (1956), claro sucedâneo temático de Fúria de Viver (1955), de Nicholas Ray, com James Dean (com o simbolismo sugestivo de encontrarmos Sal Mineo no elenco de ambos os filmes) e Contrato para Matar (1964), uma pérola da tradição “noir”, com Lee Marvin e Angie Dickinson. E lembremos também a perturbante convivência de Cassavetes com as forças do Mal em A Semente do Diabo (1968), de Roman Polanski, ou ainda no muito esquecido A Fúria (1978), fabuloso delírio barroco de Brian De Palma que reduz à sua insignificância muitas variações contemporâneas sobre as matrizes clássicas do cinema de terror.
No limite de tal processo de “ampliação” da presença do intérprete no ecrã de cinema, podemos citar esse espantoso filme terminal que é Love Streams/Amantes (1984), em que Cassavetes contracena com sua mulher, Gena Rowlands, num verdadeiro combate de emoções que condensa as singularidades de toda uma obra (dois anos mais tarde, o nome de Cassavetes ainda surgiu ligado a A Grande Burla, mas tratou-se de uma tarefa meramente logística, ajudando a concluir um filme cuja realização tinha sido iniciada por Andrew Bergman).

Actores e personagens

Num plano de ambíguo simbolismo, podemos considerar Love Streams como um reflexo da “irmandade” de emoções — uma verdadeira tribo artística — que Cassavetes criou com os seus actores de eleição. Ou ainda: ele e Gena Rowlands não “duplicam” o seu laço conjugal, já que interpretam dois irmãos — ela é uma mulher de meia idade enredada num processo desgastante de divórcio; ele é um escritor à deriva na sua dependência do álcool, acolhendo a irmã ao mesmo tempo que a ex-mulher o obriga a tomar conta do filho de oito anos (que não conhece) por um período de 24 horas…
Neste turbilhão impossível de apaziguar, sem redenção à vista, os grandes planos dos rostos acabam por funcionar de modo, não exactamente oposto, mas bem diferente do cliché que, com frequência, a eles se associa. De facto, há uma crença pueril que leva a dizer que o grande plano tem esse poder de aproximar e… revelar. Ou se quisermos retomar a dimensão “religiosa” de tal pressuposto: essa aproximação conduzir-nos-ia da dimensão física do corpo à sugestão metafísica da alma.
Podemos até supor que Cassavetes aceitaria a palavra “alma” para descrever as convulsões daqueles que filma. Ainda assim, o que importa referir é que qualquer aproximação da câmara de filmar a cada um dos seus seres cinematográficos parece ter tanto de revelador como de multiplicação do mistério. Para ele, enfim, a condição humana em grande plano não se esgota em nenhuma “significação” definitiva — em boa verdade, cada mistério desnudado converte-se em novo mistério, em novo transe corporal, em mais uma digressão pelo invisível das existências individuais.
Há ainda outra maneira de dizer isto: à maneira de alguns grandes cineastas “introspectivos” (Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman, etc.), Cassavetes é alguém que, reinventando o trabalho dos actores, refaz e relança o próprio conceito de personagem. O autor desse título, emblemático entre todos, que é Rostos (1968), afirmou-se como um revolucionário da relação entre câmara e corpos, quer dizer, dos cruzamentos dos olhares das personagens com o olhar do próprio espectador. No limite, ele entende a existência humana como um teatro íntimo — veja-se ou reveja-se o incontornável Opening Night/Noite de Estreia (1977) — cujo encenador permanece ausente. Quem é esse encenador? Talvez um deus ciumento do fulgor das almas humanas.