sábado, julho 30, 2022

Histórias contadas por Stanley Kubrick

Kirk Douglas e Stanley Kubrick
— rodagem de Horizontes de Glória (1957)

Para o cineasta de Horizontes de Glória e De Olhos bem Fechados, a arte de filmar é indissociável do labor da escrita — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 julho).

Todos conhecemos o lugar-comum que define o cinema contemporâneo a partir de uma fronteira supostamente nítida e, mais do que isso, incontestável: haveria uma zona dos chamados filmes “de efeitos especiais”… e depois tudo o resto, isto é, os “outros”.
O lugar-comum é tanto mais insidioso e, sobretudo, violentamente poderoso quanto está longe de ser uma afirmação que circule apenas pelos interstícios do quotidiano social — muitas vezes contamina os mais variados discursos jornalísticos, incluindo alguns (a que se dá o nome) de crítica de cinema.
A cegueira histórica de tais discursos é tanto maior quanto, quase sempre, os ditos efeitos especiais só são reconhecidos em filmes de super-heróis e nas suas estafadas rotinas. Tal ponto de vista é incapaz de identificar um filme como Irmãos Inseparáveis (1988) — em que David Cronenberg filmou Jeremy Irons a contracenar com… Jeremy Irons (o actor inglês interpreta dois gémeos, médicos ginecologistas) — como uma etapa decisiva na evolução dos modernos efeitos especiais. Ou ainda de reconhecer que Os Pássaros (1963), de Alfred Hitchcock, abriu novos e inusitados caminhos para a manipulação dos sons em cinema.
O que assim se menospreza é a fundamental relação da arte de realizar filmes com a concepção das respectivas histórias, ou melhor, com o trabalho de escrita de argumentos. Cito, a propósito, este pensamento: “Poderemos especular (…) até que ponto a realização não é mais nem menos que uma continuação da escrita. Ora, eu penso que a realização deve ser isso mesmo. Nessa medida, o argumentista-realizador é o perfeito instrumento dramático; e os poucos exemplos que temos em que essas duas técnicas peculiares foram devidamente controladas por um único homem geraram, acredito eu, um trabalho excelente e consistente.”
Quem escreveu estas palavras? Alguém agastado com a saturação de produções da Marvel e da DC Comics, insistindo em repetir receitas narrativas e figurativas há muito esgotadas? Nada disso. São palavras de um artigo assinado por Stanley Kubrick (1928-1999), publicado na edição de inverno (1960-61) da revista de cinema britânica Sight and Sound — o artigo foi agora republicado num notável número especial (verão 2022) para assinalar os 90 anos da revista.
Importa não esquematizar e, sobretudo, não tratar a filmografia de Kubrick como se fosse uma colecção de ideias fixas, regularmente repetidas. Por um lado, é um facto que, por essa altura, ele já trabalhara em argumentos dos seus filmes, incluindo esse genial libelo contra a guerra que é Paths of Glory/Horizontes de Glória (1957), com Kirk Douglas na dupla condição de protagonista e produtor; além do mais, na altura da publicação do artigo, desenvolvia a adaptação de Lolita, de Vladimir Nabokov (cuja estreia ocorreria em 1962). Por outro lado, nos filmes que se seguiram, os argumentos de Kubrick contaram com alguns notáveis colaboradores, incluindo Arthur C. Clarke, para 2001: Odisseia no Espaço (1968), e Frederick Raphael no título final, De Olhos Bem Fechados (1999).
O que importa destacar é o valor essencial de uma concepção — da narrativa de um filme — que nada tem que ver com a adoração beata do “visual” que, hoje em dia, se instalou em muitos sectores da comunicação social e também, obviamente, do público.
Como outros grandes narradores do cinema da segunda metade do século XX, Kubrick é um herdeiro da literatura. Entenda-se: não a literatura como “caução” artística, mas os livros como exaltação e prática do primado da escrita. E não será preciso fazer o inventário de todas as suas adaptações. Lembremos apenas, por exemplo, que o já citado De Olhos Bem Fechados tem como ponto de partida uma novela de Arthur Schnitzler, publicada em 1926, ou que Laranja Mecânica (1971) recria o romance distópico de Anthony Burgess, cuja primeira edição data de 1962.
Incluindo memórias de Alfred Hitchcock, Jean Renoir e Steven Spielberg, entre muitos outros, o número especial da Sight and Sound envolve uma cristalina pedagogia. A saber: a história dos filmes está muito longe de pode ser elaborada apenas através dos aspectos mais imediatos das suas imagens, mesmo quando intensamente emblemáticos. Autores como Kubrick são também metódicos artesãos da palavra e, nessa medida, dos caminhos de verbalização do mundo.