Philippe Sollers em Dieu Sait Quoi (1993): leituras, espelhos e ecrãs |
Graças ao ciclo da Cinemateca dedicado a Jean-Daniel Pollet reencontramos as aventuras do nosso olhar e os seus ecrãs — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 março).
Comunicação. A proliferação dos chamados meios de comunicação tornou-nos indiferentes à linguagem. Às linguagens. Deixámos de pensar, ainda menos discutir, as linguagens que usamos. Ou melhor, restringimos a sua discussão ao cumprimento pueril das normas de correção (política, simbólica, sexual, etc.) com que descrevemos, ou julgamos descrever, o mundo à nossa volta.
Olhemos, precisamente, à nossa volta. Em todo o planeta televisivo, vemos e escutamos um qualquer relator — com um microfone na mão e uma paisagem ucraniana em fundo — a falar durante cinco minutos para o olho silencioso de uma câmara… e aquietamos as nossas angústias, aceitando que estamos perante um modelo mágico de conhecimento. O medo sustenta a nossa frágil razão: afinal de contas, sem esse relator sentir-nos-íamos ainda mais sós face ao absurdo do mundo. Ao mesmo tempo, uma pergunta sussurra e enreda-se no nosso medo: será que estamos a saber utilizar todas as potencialidades dos meios decorrentes da fascinante tecnologia de que hoje dispomos?
Deslocando a questão para o país cinematográfico, esta é uma pergunta que nos pode levar a reconhecer que o cinema não evolui de forma linear — o passado refaz o presente. Penso no exemplo corrente dos efeitos especiais dos filmes dos estúdios Marvel. Em boa verdade, se olharmos com um mínimo de disponibilidade mental para os filmes que Georges Méliès realizou há mais de 100 anos (A Viagem à Lua é de 1902), compreenderemos que o génio inventivo dos efeitos de Méliès reduz os departamentos técnicos da Marvel a uma colecção de burocratas sem imaginação.
Descubram-se, a esse propósito, os filmes de Jean-Daniel Pollet (1936-2004), a passarem na Cinemateca Portuguesa num ciclo que se prolonga até final de março. No seio da Nova Vaga francesa, Pollet foi uma figura das margens, mas não marginal — bem pelo contrário: central no pensamento e na acção desse movimento (Godard, Truffaut, Rohmer, etc.) que refez todo o continente cinematográfico, pensando e repensando as suas linguagens.
O célebre Méditerranée, datado de 1963 — ano em que o grande espectáculo de Hollywood era Cleópatra, de Joseph L. Mankiewicz, ou em Portugal surgia o Acto da Primavera, de Manoel de Oliveira —, pode servir de símbolo exemplar da visão cinematográfica de Pollet. A saber: uma atenção militante (entenda-se: obsessiva) aos sinais que herdámos da história, cruzando-os com os enigmas dos elementos naturais — o mar é, em Pollet, uma entidade propriamente mitológica, à beira do divino — e os sobressaltos da palavra escrita. E também da sua transfiguração em pura oralidade. Como diz a voz de Méditerranée, este é um “país múltiplo, falsamente adormecido”.
Pollet foi arauto de uma liberdade criativa que, por vezes, precipitadamente, encaramos como uma “descoberta” do século XXI. De facto, os seus filmes dispensam qualquer convenção fechada que tenda a separar a “objectividade” do documentário e o “artifício” da ficção. Creio mesmo que a sua curta-metragem de estreia, Pourvu Qu’on Ait l’Ivresse (1957), primeira de muitas colaborações com o actor Claude Melki, registando a timidez de um homem face às mulheres num baile de domingo, pode resumir a agilidade do seu olhar: tudo aquilo tende para uma alegria burlesca (Buster Keaton é uma referência recorrente quando se fala de Melki na obra de Pollet) que não exclui a dimensão de testemunho de um tempo social muito concreto, de irrepetíveis gestos e singularidades.
Pollet assinou um dos seis episódios de Paris Visto Por… (1964), deliciosa colecção de histórias que ficou como uma espécie de manifesto da Nova Vaga. O seu trabalho foi-se abrindo à pluralidade das linguagens, incluindo a “aplicação” do movimento do cinema às imagens fotográficas. Assim acontece em Contre-Courant (1991), montagem dramática de fotos da paisagem urbana parisiense, ou no belíssimo Jour Après Jour (2006), filme póstumo, concluído por Jean-Paul Fargier, tendo como base as fotografias que Pollet foi fazendo na sequência de um grave acidente que, na fase final da sua vida, o impediu de caminhar.
No limite, um pouco à maneira do Godard do século XXI, Pollet convoca memórias dos seus próprios filmes para relançar a reflexão sobre os poderes e limites do cinema. É o caso de Dieu Sait Quoi (1993), em que a poesia de Francis Ponge o leva a revisitar imagens filmadas para Mediterranée e também Contretemps (1988), revendo, por exemplo, Philippe Sollers, agora num ecrã televisivo. Fica, por isso, uma lição básica: as imagens existem e renascem através dos ecrãs em que as vemos, refazendo a nossa identidade.