sábado, março 26, 2022

Do teatro para o cinema

Annette Bening e Josh O'Connor:
saudades do paraíso perdido

Tendo como base uma peça de sua autoria, William Nicholson realizou Uma Réstia de Esperança, filme capaz de nos devolver o valor das palavras e a importância dos actores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 março).

Como todos sabemos (a começar pelos distribuidores e exibidores de filmes), a nossa actualidade cinematográfica está perversamente inflacionada — esta semana [17 março], entre salas e plataformas de streaming, surgem 17 novos títulos. A avalanche de estreias faz com que haja uma percentagem mínima de filmes protegidos por grandes campanhas promocionais. Os outros, silenciosamente, batalham pela atenção dos espectadores.
Entenda-se: esta é uma observação objectiva, não uma fútil atribuição de “culpas” seja a quem for. Acontece que, por vezes, entre essas estreias há pequenas pérolas que merecem ser descobertas. É o caso de Uma Réstia de Esperança (Hope Gap no original), produção britânica revelada em setembro de 2019, no Festival de Toronto, com William Nicholson, argumentista e realizador, a adaptar uma peça de sua autoria, intitulada The Retreat from Moscow.
Na conjuntura actual, as raízes teatrais deste drama acabam por adquirir uma importante dimensão cinematográfica. Dito de outro modo: nada do que aqui acontece tem que ver com o novo-riquismo de efeitos (pouco) especiais, muito menos com seres vindos de outras galáxias para atormentar os pobres humanos — são as palavras que comandam.
Em cena estão Grace e Edward, habitantes de Seaford, cidade costeira do sul da Inglaterra. Casados há 29 anos, vivem num ambiente de solidões desencontradas: ele professor de liceu, obcecado pelas suas intervenções na Wikipedia, ela envolvida na organização de antologias poéticas. Subitamente, ou talvez não (trata-se, afinal, de uma crise que se foi insinuando em todos os detalhes do quotidiano), Edward confessa que tem uma relação com outra mulher e vai partir… As convulsões afectivas enredam-se com o facto de o primeiro ouvinte da sua confissão ser o filho que vive em Londres, visitando Seaford de forma irregular…
O que mais conta são, de facto, as palavras que circulam por este labirinto privado. Aliás, se pelo meio o filme se “perde” um pouco, isso parece resultar da tentativa criar uma alternância de espaços algo supérflua. Porquê supérflua? Porque se há “tema” que pontua os momentos vitais de Um Réstia de Esperança é, justamente, a dificuldade de verbalização do que está a acontecer. Por alguma razão, a demanda de Grace dirgida a Edward envolve o desejo de que ele fale, não pare de falar.
Annette Bening e Bill Nighy são magníficos na representação dessa relação conjugal cuja ilusória naturalidade vai ser drasticamente posta à prova. No papel do filho, Josh O’Connor (mais conhecido pela interpretação da personagem do Príncipe Carlos na série The Crown) consegue encarnar a ambivalência de sentimentos que o faz viver num ziguezague moral, também ele habitado por muitas palavras por dizer, entre o pai e a mãe. Sem esquecer que William Nicholson sabe tirar o melhor partido da paisagem costeira, afinal transformando Seaford numa verdadeira personagem da história de Grace e Edward — dir-se-ia um pequeno paraíso perdido, desencantado com as tragédias íntimas dos humanos.