segunda-feira, março 07, 2022

Ainda há heróis
que não são super-heróis

George MacKay como Ned Kelly:
será que existe um imaginário punk do século XIX?

Ned Kelly e o seu gang, figura lendárias da Austrália do século XIX, reaparecem no cinema, agora numa realização Justin Kurzel, com George MacKay no papel central: os resultados oscilam entre entre realismo e pesadelo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 fevereiro).

O escritor australiano Peter Carey tem uma filmografia curta, mas pontuada por algumas proezas assinaláveis, a começar pela colaboração no argumento de Até ao Fim do Mundo (1991), de Wim Wenders. Depois, o romance que lhe valeu o seu primeiro Booker Prize, em 1988, Oscar e Lucinda (publicado em português pela Dom Quixote), sobre a relação picaresca de um pastor anglicano e uma jovem herdeira australiana, em meados do século XIX, foi transformado em filme em 1997 pela cineasta australiana Gillian Armstrong, com Ralph Fiennes e Cate Blanchett nos papéis principais.
Agora chega-nos O Bando de Ned Kelly, inspirado no livro que em 2001 valeu a Carey um segundo Booker Prize — o título original, True History of the Kelly Gang, coincide com o do romance (A Verdadeira História do Bando de Ned Kelly, ed. Dom Quixote). É um lançamento algo desfasado da dinâmica dos mercados internacionais, já que o filme teve a sua estreia mundial em setembro de 2019, no Festival de Toronto, tendo sido distribuído em vários países europeus ao longo do primeiro semestre de 2020.
Claro que nenhum filme será “melhor” ou “pior” por causa dos sobressaltos (nem sempre muito racionais…) dos calendários de distribuição e exibição. Seja como for, entretanto, o realizador de O Bando de Ned Kelly, o australiano Justin Kurzel, já assinou mais um filme, Nitram: foi apresentado na secção competitiva do Festival de Cannes de 2021, tendo valido o prémio de melhor actor a Caleb Landry Jones. Antes disso, conhecíamos Kurzel através de uma versão de Macbeth (2015) e também de Assassin’s Creed (2016), baseado no videojogo homónimo — num caso como noutro, os papéis principais pertencem a Michael Fassbender e Marion Cotillard.

Uma figura lendária

Kurzel parece procurar sempre um certo excesso formalista que tende a esvaziar as singularidades das histórias que encena — o seu Macbeth ficava-se por uma medíocre divagação “onírica” em torno de Shakespeare, enquanto Assassin’s Creed era um monumental disparate digital. Agora, face à figura lendária de Ned Kelly, o “barroquismo” de Kurzel adquire inesperada motivação, de tal modo que, mesmo com os seus desequilíbrios e redundâncias, O Bando de Ned Kelly resulta, de longe, o seu trabalho mais consistente.
Ned Kelly (1854-1880) é um daqueles heróis lendários que nos seduz através de um caldeirão de emoções contraditórias, de tal modo a sua curta existência ficou marcada por actos de radical violência. Uma coisa é certa: por uma vez, neste registo de aventuras tocadas pela tragédia, temos um filme que se interessa por gente de carne e osso, muito longe da monotonia digital em que quase todos os super-heróis (Marvel & etc.) têm vindo a cair. Por certo atendendo à lógica da escrita de Carey, Kurzel propõe-nos um Ned Kelly indissociável de todo um contexto histórico atravessado pelas convulsões internas do Império Britânico.
A Austrália surge, aqui, como “retaguarda” do poder britânico, território imenso que, ao longo do século XIX, acolhe os marginais condenados a penas de prisão que são também formas compulsivas de exílio. John, o pai de Ned Kelly, é um desses marginais, enquanto a mãe, Ellen, sobrevive através de uma casa ilegal de bebidas (“shebeen”) que é também um bordel — Ned emerge como herdeiro “natural” desse universo de miséria e decadência.

Um ícone punk

A representação mitológica de Ned Kelly — por exemplo, usando a armação metálica com que enfrenta a polícia — funde-se, assim, com as componentes de um desencantado fresco histórico. O filme vai-se edificando através de hábeis ziguezagues temporais e emocionais (brilhante montagem de Nick Fenton), de tal modo que a crueza das situações tem tanto de observação realista como de assombramento e pesadelo.
Decisiva é a composição de Ned Kelly pelo brilhante George MacKay, ele que, também em 2019, se destacou numa das personagens centrais do épico sobre a Grande Guerra, 1917, realizado por Sam Mendes. Não se trata tanto de ilustrar o mito mas, num certo sentido, de assistir ao seu nascimento — da brutalidade das situações à abstracção da lenda.
O apelo simbólico de Ned Kelly — ele é, afinal, o criminoso que expõe as contradições do próprio sistema que o julga — tem gerado as mais variadas abordagens cinematográficas, desde o período mudo, com The Story of the Kelly Gang (1906), realização de Charles Tait de que não se conhece qualquer cópia integral, até Ned Kelly (2003), com Heath Ledger sob a direcção de Gregor Jordan.
Em qualquer caso, a versão mais famosa (ou, de acordo com a personagem, mais lendária), será a de 1970, também intitulada Ned Kelly, com assinatura de Tony Richardson: Mick Jagger assume o papel central, numa altura em que o vocalista dos Rolling Stones parecia querer construir uma carreira como actor (no mesmo ano protagonizou também Performance, de Nicolas Roeg). Em boa verdade, se há uma ligação entre a visão de Richardson e a proposta de Kurzel será através de um certo imaginário rock: Ned Kelly poderá ser um ícone punk a caminho de uma tragédia sem remissão.