Sergei Polunin e Laetitia Dosch: entre palavras e silêncios |
Fora de todas as modas temáticas ou sociológicas, Uma Paixão Simples, de Danielle Arbid, percorre o labirinto de um amor radical, à beira da loucura — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 outubro).
Lembremos uma curiosa banalidade: cada época gera os seus filmes que, com maior ou menor subtileza, reflectem a complexidade das relações masculino/feminino. Em 1966, podemos mesmo encontrar um ensaio de Jean-Luc Godard sobre a juventude que se intitula Masculino Feminino. Digamos, por exemplo, que, goste-se mais ou goste-se menos de uma referência clássica como O Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, não faz sentido lidar com ele a partir das convulsões sociais e morais de anos recentes, em particular de factos, valores e debates em torno do movimento #MeToo.
Invulgar e fascinante no caso de Uma Paixão Simples, de Danielle Arbid, é o facto de estarmos perante o retrato de uma paixão radical entre um homem e uma mulher (o radicalismo confunde-se com a simplicidade que o título sublinha), no limite dispensando a própria verdade da contextualização histórica. Eis uma história em tudo e por tudo ligada a lugares, sinais e comportamentos deste nosso século XXI, mas que se desenvolve como se o presente e, nessa medida, a prisão do tempo, fosse um pormenor descartável.
Hélène (Laetitia Dosch) vive com o filho e é a primeira protagonista desse impulso passional que a conduz a Aleksandr (Sergei Polunin), diplomata que trabalha na embaixada da Rússia. Como ela diz logo na abertura do romance homónimo de Annie Ernaux em que o filme se baseia: “A partir do mês de setembro do ano passado, não fiz mais nada a não ser esperar um homem: esperar que ele me telefonasse e viesse a minha casa” (tradução de Tereza Coelho, ed. Livros do Brasil). Aleksandr devolve a Hélène a loucura do seu desejo, de tal modo que cada um dos seus “rendez-vous” está contaminado por uma ânsia — obviamente sexual, tragicamente afectiva — que parece prenunciar a perdição daquele amor fora da história.
Não é uma questão moral que está em jogo (a não ser no sentido em que os amantes constroem o seu próprio e privadíssimo edifício moral). Por isso mesmo, Danielle Arbid elabora uma ética de filmagem que suspende juízos normativos, recusando qualquer formatação dramática ou simbólica das relações entre dois seres humanos.
Daí que este seja um filme que instala a sensação invulgar, não necessariamente consciente, de ser todo ele rodado em grandes planos — como se a única maneira de conhecer um pouco da loucura que une (e separa, hélas!) Hélène e Aleksandr fosse penetrar com a câmara nos recantos dos olhares e dos corpos, das palavras que se dizem ou dos silêncios que suspendem os gestos.
Nada a ver, como é óbvio, com as noções correntes de “sensualidade”. Se há alguma referência que talvez faça sentido convocar será a de Georges Bataille e a sua definição de erotismo como afirmação de vida “até na própria morte”. O que, bem entendido, é revelador da solidão cultural de um filme como Uma Paixão Simples. Se o leitor procura um paralelismo possível, sugiro a redescoberta de A Felicidade (1965), curiosamente também um filme realizado por uma mulher: Agnès Varda.