O mercado cinematográfico passou a depender de factores que desvalorizam o próprio desejo de descobrir um filme — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 outubro).
No dia 7 de outubro, Titane, de Julia Ducournau, estreou-se em 13 ecrãs do mercado cinematográfico português. Segundo os dados do Instituto do Cinema e do Audiovisual referentes ao fim de semana de 14 a 17 de outubro, o filme manteve-se em nove daquelas salas, acumulando um total de 2.415 espectadores. Que dizer destes números? É simples: são sinal de um cruel falhanço comercial.
Desta vez, pelo menos, bastará ler a esmagadora maioria dos meios de comunicação (nacionais e internacionais) para verificar o eterno absurdo do argumento “a culpa é dos críticos…” A não ser, claro, que a demagogia recupere a versão simétrica, garantindo que “ninguém vai ver os filmes defendidos pelos críticos…”
Podemos dispensar renovadas considerações sobre a exposição pública de que cada filme desfruta (ou pode desfrutar), ainda que não seja possível ignorar a objectividade de mais alguns números. A saber: no mesmo dia em que Titane ocupava os seus 13 ecrãs, 007: Sem Tempo para Morrer surgia em 165.
Esqueçamos até o facto de se tratar de um título com chancela de uma pequena distribuidora independente, com acesso limitado ao circuito das salas. Por mera comodidade descritiva, pensemos em Titane como se tudo isso fosse indiferente na vida comercial de um filme, seja ele “bom” ou “mau”. Será preciso repetir que nada disto tem a ver com o juízo de valor que este ou qualquer outro filme possa suscitar? Incluindo, claro, as vibrantes novas aventuras de James Bond. E, já agora, sem esquecer que todos passámos a ser súbditos do império do “streaming”.
Lembremos apenas que estamos a falar do mesmíssimo filme que foi manchete em todo o planeta quando, há pouco mais de três meses, arrebatou a Palma de Ouro do maior festival de cinema do mundo (Cannes). E também que o retrato que Julia Ducournau faz das experiências emocionais e sexuais da sua protagonista será tudo o que se quiser menos um tema sem inúmeros e ruidosos ecos mediáticos — o rótulo de “filme-choque” foi mesmo universalmente utilizado para definir as singularidades de Titane.
Daí a pergunta que importa colocar. Sem esquecer os desequilíbrios internos do mercado português. Antes sublinhando-os. Não é uma pergunta esquematicamente “comercial”, nem especificamente “artística”. A sua formulação não pretende recalcar tais dimensões, antes pensá-las num contexto mais vasto de valores e comportamentos. Ou seja, é uma pergunta visceralmente cultural: que está a acontecer num país cinematográfico em que Titane mobiliza 2.415 espectadores no mesmo número de dias em que o mais recente James Bond vende 316.596 bilhetes?
A resposta mais genérica, embora insuficiente, é aquela que, dos meios empresariais aos decisores políticos, quase ninguém quer enfrentar. Decorre de uma desarmante singeleza: em Portugal, a cultura cinéfila está a desagregar-se de forma trágica, porventura irreversível.
Não simplifiquemos. Titane é um filme cru, desafiante, implacável com o seu espectador. Mas “explicar” o que está a acontecer através dos estados de alma que o cinema pode suscitar é o mesmo que proclamar que as grandes audiências do Big Brother televisivo (e suas infinitas derivações) resultam do facto de os espectadores aí reconhecerem a herança dos retratos “shakespearianos” das paixões humanas.
O rol de factores que tem contribuído para o esvaziamento da cinefilia não cabe, nem de longe nem de perto, na brevidade destas linhas, até porque não é estranho ao fenómeno global de abandono (por vezes, macabra destruição) das salas tradicionais, em paralelo com o triunfo da cultura consumista dos multiplexes — o que, entenda-se, não exclui o reconhecimento de que é nos multiplexes que estão alguns dos melhores aparatos técnicos de projecção.
Lembremos, então, dois desses factores. O primeiro nasce de uma lógica selectiva: as forças mais poderosas do mercado consagraram uma noção dominante de público “juvenil” que se fundamenta na promoção incessante de filmes de super-heróis e na indução de formas de consumo que ignoram os valores especificamente cinematográficos (observe-se, por exemplo, o cruzamento do marketing cinematográfico com o mercado dos telemóveis e algumas patéticas actividades dos “influencers” virtuais).
O segundo factor resulta da diluição simbólica do cinema nessas formas de consumo, desvalorizando o próprio acto de assistir a um filme, no limite desobrigando o espectador de respeitar as regras básicas de civilidade a que tal consumo obriga. Não é preciso encomendar uma sondagem científica para sabermos que cresceu o número de pessoas que desistiram de frequentar muitas salas de cinema porque nelas não encontram a serenidade básica (entenda-se: colectiva) para satisfazer o desejo de descobrir um filme.
Titane é um filme inteligente, perverso e muito hábil no modo como reflecte questões dos nossos dias que envolvem a fragilização da própria dimensão humana. É essa, pelo menos, a minha perspectiva, sem que tal impeça o reconhecimento de que haverá outras leituras, igualmente legítimas, que resistem ao modo como essa reflexão nos é apresentada. O que está em causa não são os méritos ou deméritos de Titane, mas o seu apagamento social — e a formatação da nossa cultura audiovisual.