Dennis Weaver em "Duel": um popular actor de séries do Oeste americano |
A carreira de Steven Spielberg começou na televisão, já lá vão 50 anos: o seu telefilme Duel/Um Assassino pelas Costas foi emitido pelo canal ABC no dia 13 de novembro de 1971 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 novembro 2021).
Nestes tempos de coexistência, por vezes de conflito, entre os pequenos e os grandes ecrãs, as salas escuras e os circuitos de streaming, as produções de cinema vivem, para o melhor ou para o pior, enredadas com os dispositivos televisivos — no limite, todas as fronteiras se diluem. Como bem sabemos, nem sempre foi assim. E momentos houve em que, ironicamente, a história do cinema se escreveu também através da televisão. Um belo exemplo ocorreu há meio século: no dia 13 de novembro de 1971, o canal americano ABC estreava aquele que, para todos os efeitos, ficou como o primeiro filme de Steven Spielberg: Duel, entre nós Um Assassino pelas Costas.
É verdade que, através de uma prodigiosa colecção de títulos lendários — Tubarão (1975), E.T. - O Extra-Terrestre (1982), Parque Jurássico (1993), etc., etc. —, Spielberg viria a encarnar a própria ideia de Cinema (com maiúscula), um pouco à maneira de Alfred Hitchcock nas décadas de 1940/50. Mas não é menos verdade que, para lá da sua filiação no classicismo de Hollywood, a sua formação e prática como realizador de filmes é indissociável da televisão. Duel foi, assim, o primeiro trabalho de fundo de Spielberg para televisão. Dito de outro modo: na origem, estamos perante um telefilme.
Nascido em 1946, Spielberg começara muito cedo a tentar a realização, acabando por assinar a curta-metragem Amblin (1968), sobre um casal de jovens “hippies” a deambular por paisagens desérticas. O título do filme seria adoptado como nome da sua própria empresa de produção que continua em plena actividade (o respectivo símbolo vai voltar a aparecer no novo filme de Spielberg, West Side Story, a ser lançado no Natal). Mais do que isso: o reconhecimento de Amblin valeu a Spielberg o seu primeiro contrato televisivo, com os estúdios Universal.
Como outros profissionais que tiveram importantes carreiras no mundo do cinema (lembremos apenas o exemplo do realizador de África Minha, Sydney Pollack), Spielberg começou por dirigir episódios de diversas séries, incluindo Marcus Welby, sobre o dia a dia de um médico interpretado por Robert Young, e Columbo, relatando as investigações de um detective da polícia de Los Angeles, célebre personagem interpretada por Peter Falk.
Para Spielberg, era importante dirigir um “filme de fundo”, isto é, um telefilme para consolidar o seu estatuto. A oportunidade surgiu quando Nona Tyson, a sua secretária, lhe sugeriu que lesse o conto intitulado Duel que Richard Matheson acabara de publicar na Playboy (abril 1971, capa) — a Universal tinha adquirido os direitos de adaptação, visando a sua inclusão na rubrica “Movie of the Week” que a ABC emitia aos sábados à noite (a rubrica manteve-se entre 1969 e 1975).
O desafio era grande, desde logo porque Matheson era um autor consagrado no domínio do fantástico mais ou menos ligado às matrizes da ficção científica — Hollywood tinha já adaptado, por exemplo, os seus romances I Am Legend (1954) e The Shrinking Man (1956). Mais do que isso, Duel colocava em cena uma situação minimalista — o condutor de um automóvel é perseguido, sem razão aparente, por um gigantesco camião — que representava um invulgar desafio de mise en scène.
Obviamente não por acaso, Duel passou a ser frequentemente associado a Tubarão, que Spielberg assinaria quatro anos mais tarde. Em ambos os casos, a emoção e o suspense nascem não apenas da acção física propriamente dita, mas do factor irracional que gera o medo: tal como o tubarão, o camião que persegue o protagonista não obedece a qualquer lógica dramática, muito menos humana — ataca para destruir, ponto final.
Magnificamente fotografado por Jack A. Marta, típico e talentoso veterano da “idade de ouro” de Hollywood, Duel tinha também um trunfo especial no intérprete principal, Dennis Weaver. Embora com alguma carreira no cinema (em 1958, por exemplo, integrara o elenco de A Sede do Mal, de Orson Welles), era, sobretudo, uma figura popular do pequeno ecrã, em particular através das séries do Oeste Gunsmoke e McLoud: a familiaridade do seu rosto ajudava a reforçar o misto de estranheza e inquietação da saga vivida pela personagem de Duel.
O impacto do telefilme levou a Universal a “transformá-lo” em objecto de cinema, difundindo-o em algumas salas dos EUA e, sobretudo, nos cinemas europeus. Portugal foi um dos países em que o nome de Spielberg foi descoberto, precisamente, através de Um Assassino pelas Costas.
Em 1974, Spielberg teria a sua estreia “oficial” como realizador de cinema, assinando esse magnífico e, infelizmente, pouco conhecido drama policial que é The Sugarland Express/Asfalto Quente. Um ano mais tarde, o mundo descobriria o seu tubarão assassino, revolucionando de alto a baixo os conceitos de espectáculo e o mercado dos filmes.