Payal Kapadia filma o cinema como acontecimento íntimo — à direita, no ecrã do computador, Jean Seberg |
Programado pelo LEFFEST, o filme A Night of Knowing Nothing repensa de forma admirável as relações entre documentário e ficção; o filme de Payal kapadia acabou por vencer o festival — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 novembro).
Eis uma bela imagem. Simples, depurada, feita daquela beleza em que o particular se projecta no universal, ao mesmo tempo que o universal nos alerta para as singularidades do particular. Vemos uma figura de homem, deitado num cenário austero, olhando para o seu computador colocado numa mesa ao lado — no ecrã surge o rosto inconfundível de Jean Seberg em O Acossado (1959), de Jean-Luc Godard.
Tudo isto em movimento, entenda-se, já que estamos perante um momento do filme A Night of Knowing Nothing/Noite Incerta, prodigioso objecto de cinema proveniente da Índia que, no passado mês de julho, em Cannes, valeu à sua realizadora, Payal Kapadia (nascida em Mumbai, 1986) o prémio L’Oeil d’Or para o melhor documentário exibido em todas as secções do festival (passou na Quinzena dos Realizadores). Integrou a secção competitiva do LEFFEST — com exibições no Centro Cultural Olga Cadaval, Sintra (dia 14, 11h00) e no Nimas, Lisboa (dia 19, 15h00).
Dizer que A Night of Knowing Nothing [cartaz] ilustra uma tendência actual da produção cinematográfica — a contaminação dos dispositivos documentais pelas mais variadas linguagens de ficção — será inevitável, ainda que me pareça francamente insuficiente. Desde logo, porque não se trata de explorar o efeito, quase sempre simplista e pueril, que resulta da combinação de materiais de arquivo com cenas de “reconstituição” daquilo que “realmente” aconteceu.
Que aconteceu, então? Algo que, de facto, desafia o próprio poder das imagens para dar conta daquilo que “registam”. Ou ainda: a certeza prática, de uma só vez afectiva e simbólica, de que “registar” não esgota a verdade seja do que for, apenas torna mais sensível — ou, é caso para dizer, visível — a necessidade de qualquer “registo” pensar as condições da sua própria montagem e transmissão.
Kapadia começa o seu filme em tom epistolar. Vamos conhecendo as cartas de uma estudante do Instituto de Cinema e Televisão da Índia dirigidas ao seu namorado — cada um identificado apenas por uma letra: ela é L., ele é K. Lidas pela voz serena e magoada da actriz Bhumisuta Das, as cartas mostram que L. sabe que a sua relação está assombrada pela pressão da família de K. que a considera indigna do filho, porque pertencente a uma casta inferior. A pouco e pouco, essa ruptura anunciada vai-se cruzando com as imagens (realmente documentais, em Super 8, preto e branco) de diversas manifestações de estudantes que protestam contra algumas medidas do governo de Narendra Modi, incluindo a nomeação de dirigentes escolares por alegado favorecimento político e o aumento brutal das propinas. Como pano de fundo desta conjuntura, emerge a sugestão, sublinhada pelos manifestantes, de que divisão de castas condiciona de forma dramática o acesso ao ensino.
A distância (geográfica e cultural) de tudo aquilo que nos é mostrado aconselha alguma contenção, quanto mais não seja para evitarmos ceder a chavões “políticos” supostamente universais. Até porque o filme se vai construindo numa ziguezague que me atrevo a designar como poético. Assim, por um lado, o efeito de verdade das imagens das manifestações é perturbante — como limite, surge mesmo um longo plano fixo, registado por uma câmara de vigilância, em que vemos alguns elementos da polícia a agredir, à bastonada, um grupo de alunos encurralados numa sala. Por outro lado, o contraponto das cartas de K. introduz a necessidade de uma distância pedagógica, evitando encerrar o mundo num esquema “a preto e branco”, como lembra um dos intervenientes numa reunião de alunos (a ironia é discreta e saborosa: estamos, afinal, a ver um filme quase só de imagens a preto e branco).
Num livro admirável, com o sugestivo título de Filmosophy (Wallflower Press, Londres, 2006), Daniel Frampton, fundador do site “Film-Philosophy” defendeu a ideia de que “o cinema oferece um outro futuro para a filosofia.” Esse futuro pode ser sinalizado pela nova palavra que ele propõe no seu título: filmosofia. Aplicando a sua nova terminologia, lembra: “A filmosofia não é melhor que a fillosofia, mas sim outro género de filosofia — um acontecimento filosófico intuitivo e afectivo.”
Creio que há qualquer coisa dessa dinâmica de pensamento e acção no filme de Payal Kapadia, a meu ver um dos títulos fundamentais do ano cinematográfico de 2021. Não apenas uma memória de determinados acontecimentos vividos, mas a consciência aguda de que qualquer organização dessa memória é uma forma de continuar a vivê-los por outras vias — abraçando a sua complexidade, integrando a sua herança na história de cada um (espectador incluido). A certa altura, num pano utilizado pelos estudantes nas manifestações, lê-se uma frase, ou melhor, uma pequena colecção de palavras que condensa de forma tocante o amor do cinema que por aqui circula: “Amor, paz, música, greve, resistência, povo, cinema, solidão”.