Problema em aberto: como pensar a relação entre a oferta e a procura? |
Os números de espectadores são objectivos, mas dramaticamente insuficientes para pensar a complexidade do mercado: este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 outubro).
Consulto os mais recentes números das bilheteiras de cinema em Portugal, publicados pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA). No fim de semana de 7/10 de outubro, 007: Sem Tempo para Morrer vendeu 59.683 bilhetes; no mesmo período, o filme português A Metamorfose dos Pássaros teve 1.206 espectadores — contas redondas: 50 vezes menos que a nova aventura de James Bond. Entretanto, o filme de 007, estreado na semana anterior, já foi visto por 246.478 pessoas.
Imagino que estes dados satisfaçam os pensadores de coisa nenhuma, ciclicamente apostados em convencer-nos que os dramas do cinema português só podem ser pensados a partir daquilo que o público “quer” ver… Conheço essa sociologia de bolso há décadas. Há nela uma mal disfarçada indiferença pela vida comercial dos filmes portugueses: tratar-se-ia apenas de estabelecer a “justa” adequação entre a oferta e a procura, na certeza de que todas as responsabilidades estarão sempre do lado dos que procuram, isto é, os espectadores… A oferta, em boa verdade, não existe: os filmes chegam à noite transportados por cegonhas — ninguém os escolhe, programa ou promove.
Uma variante obrigatória desta ideologia envolve uma acusação cínica contra a “crítica”, sempre tratada como rebanho (inclusive em certas formas de publicidade), escamoteando a radical heterogeneidade do espaço crítico. Diz-se, então, que determinado filme foi consagrado pela “crítica”, mas “ninguém” o foi ver… Para tal demagogia, o filme de Catarina Vasconcelos será uma excelente cobaia, até porque arrebatou vários prémios no circuito internacional dos festivais. Ou seja: funciona muito bem “lá fora”, mas no seu próprio país “ninguém” se interessa pelo assunto.
O mesmo cinismo lembrará que a “crítica” considera que o mercado funciona mal quando os “seus” filmes eleitos não têm sucesso… A esse propósito, posso citar a simpatia que já exprimi publicamente, tanto por 007: Sem Tempo para Morrer como por A Metamorfose dos Pássaros. Mas sei que, ao fazê-lo, estou a dar um tiro no pé: não se trata de pensar a vida pública dos filmes (portugueses ou não) a partir dos juízos de valor que possam suscitar, mas sim de relembrar a necessidade de problematizar a circulação desses mesmos filmes à margem de tais juízos. Quero eu dizer: ainda que a minha avaliação destes dois filmes fosse totalmente negativa, os problemas que aqui enumero seriam rigorosamente os mesmos.
Que se passa, então? Tudo começa num problema de conhecimento e percepção — por vezes, há que reconhecê-lo, favorecido por formas de jornalismo que apenas procuram “agitação” ou “polémica” —, problema que começa na sistemática ignorância dos (outros) números do mercado.
Assim, por exemplo, no período referido, quantos ecrãs exibiram 007: Sem Tempo para Morrer? Resposta do ICA: 165 ecrãs que promoveram 1.492 sessões. Quais os números respectivos para A Metamorfose dos Pássaros? Ainda com a preciosa ajuda do ICA: 19 ecrãs, 84 sessões. Digamos, para simplificar: mesmo que a lotação média das salas de A Metamorfose dos Pássaros fosse de 500 lugares (número estupidamente exagerado para a estrutura actual do mercado), e mesmo que o filme de Catarina Vasconcelos esgotasse todas as suas sessões, ainda assim ficaria abaixo da performance de 007: Sem Tempo para Morrer.
O que está, então, em causa? Uma ideologia que, pela minha parte, profissionalmente, conheço desde os heróicos anos 70. Transmitida de geração em geração, tal ideologia mantém-se incólume e inabalável, apostada em convencer-nos — e, não tenho dúvidas sobre isso, convencer os seus mensageiros — de que os números de fim de semana são o princípio e o fim da complexidade do mercado cinematográfico.
O que se recalca, então? Uma infinidade de vectores que nos podem (e devem) levar a reflectir, por exemplo, sobre o lugar do cinema no ensino (a começar pelas crianças) ou as suas diversas configurações televisivas, sem esquecer as limitações promocionais dos pequenos distribuidores e a sua dificuldade de acesso a muitas salas. Mas fiquemo-nos pelas escolhas dominantes no mercado e o modo como tais escolhas, de uma maneira ou de outra, desempenham um decisivo papel cultural na formação e formatação dos públicos.
Cultural? Mas então quem faz a cultura cinematográfica não são os artistas e, já agora, os pobres dos críticos? Serão, sim, em modesta escala, mas é tempo de desmontarmos essa noção de “cultura” como uma espécie de medicina das almas (bela metáfora, por sinal) que, mais tarde ou mais cedo, será sancionada por alguma medalha estatal. Nada disso: os mais poderosos agentes culturais do cinema estão do lado da produção, da difusão e do marketing.
Podemos imaginar uma experiência surreal: coloque-se a nova superprodução da Marvel ou da DC Comics apenas em 19 salas, tal como A Metamorfose dos Pássaros. E não se gastem os milhares de euros que habitualmente são investidos na promoção das aventuras de super-heróis. Depois disso, marcamos encontro para voltar a falar de números… Alternativa séria? Alguma disciplina para lidarmos com aquilo que Michel Foucault chamou “a grande cólera dos factos”.