domingo, outubro 03, 2021

Facebook
— os algoritmos não explicam tudo

Como funciona o Facebook? Escrito por duas jornalistas do New York Times, An Ugly Truth é um livro precioso para desmontar um sistema de (des)informação capaz de perverter os valores democráticos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 setembro).

Aaron Sorkin
Há alguns anos, comentando o argumento que escreveu para A Rede Social (2010), o filme de David Fincher sobre a criação do Facebook, Aaron Sorkin fez uma curiosa observação: “O que me atraiu foi, com um pano de fundo muito moderno, encontrar uma história tão antiga como a própria arte de contar histórias — sobre amizade, lealdade, poder, traição, classe, ciúme, todas essas coisas sobre as quais escreveram Ésquilo ou Shakespeare…”
Dir-se-ia que, agora em livro, encontramos um prolongamento do prodigioso trabalho de Sorkin (Oscar de argumento adaptado). Em An Ugly Truth (The Bridge Street Press, Londres, 2021), Sheera Frenkel e Cecilia Kang oferecem-nos 300 páginas vertiginosas sobre o Facebook, mais exactamente sobre a dramática evolução da plataforma digital de Mark Zuckerberg — de uma “brincadeira” de estudantes universitários até à condição de entidade susceptível de viciar os mecanismos da democracia política.
No começo, havia essa utopia informática de “colocar todos os seres humanos online” (segundo uma expressão da revista Time, em 2014, titulando um dossier sobre Zuckerberg). A pouco e pouco, a dinâmica dos algoritmos da “rede social” foi-se revelando cada vez mais enredada e menos social, a ponto de se tornar um elemento politicamente perverso das convulsões que pontuaram o “reinado” de Donald Trump. Daí a escolha das autoras: “Optámos por focar um período de cinco anos, entre duas eleições nos EUA, durante o qual foi exposto o falhanço da companhia em proteger os seus utilizadores e também as suas vulnerabilidades enquanto poderosa plataforma global. (…) Seria fácil reduzir a história do Facebook a um algoritmo que correu mal. A verdade é muito mais complexa.”

Uma companhia publicitária

Frenkel e Kang são jornalistas do New York Times, a primeira especializada em informática e segurança cibernética, a segunda analisando tecnologia e respectiva regulamentação legal. An Ugly Truth (à letra: “uma verdade feia” ou “terrível”) começa por ser, justamente, um invulgar objecto de investigação jornalística, integrando e contextualizando uma avalancha de factos, documentos e depoimentos. O objectivo é identificar e compreender o sistema ideológico que define a acção de Zuckerberg desde os tempos do nascimento do Facebook na Universidade de Harvard (precisamente o período tratado no filme de Fincher): “Essa ideologia estava enraizada numa versão de princípios libertários favorecendo a inovação e mercados livres, ao mesmo tempo desdenhando os limites impostos pelos governos e regulamentações.”
O livro é rigorosamente didáctico no modo como explica a proliferação de notícias falsas postas a circular pela Rússia ou mensagens racistas de grupos apoiantes de Trump, evitando sempre ceder ao cliché bombástico segundo o qual o Facebook estaria “ao serviço do presidente”. O que está em jogo não decorre de um laço tradicional de subserviência política, mas sim de uma lógica visceralmente comercial: o Facebook funciona como “companhia publicitária” em que a multiplicação de links (geradora de rendimento) é o elemento dominante. De forma simples: o Facebook não é uma religião da transparência global, mas um negócio.
Como? Gerando fluxos de exposição aos anúncios que publica, quase sempre secundarizando as questões de segurança e, em particular, instrumentalizando os dados pessoais dos utilizadores — em 2018, o escândalo da Cambridge Analytica, empresa britânica de consultadoria política, revelou a manipulação indevida de dados pessoais de 87 milhões desses utilizadores. Ou como se escreve em An Ugly Truth: “Zuckerberg mantinha um discurso positivo sobre o empenho da plataforma na segurança dos dados privados, mas o consenso generalizado no interior da própria companhia era que o crescimento vinha primeiro, sendo a segurança e a protecção questões secundárias.”

Amigos e inimigos

O livro de Frenkel e Kang mostra que não basta classificar os desastres (des)informativos do Facebook como “desvios” da sua filosofia fundadora: é essa filosofia que produz tais desastres, a começar pelo conceito de “News Feed”. Nele se reflecte um individualismo pueril: o utilizador da plataforma é induzido, não a conhecer a pluralidade do mundo, antes a aceder (apenas) às notícias que “definem” o seu mundo: “Enquanto os editores de um jornal determinam a hierarquia de artigos que surgem na primeira página ou na entrada de um site, Zuckerberg imaginou uma hierarquia personalizada de ‘graus de interesse’ capaz de definir aquilo que cada utilizador vê na sua versão individual do feed.”
Consequência prática? Através dos mecanismos técnicos postos em prática pelo Facebook, uma qualquer “notícia” que, pela sua temática ou natureza “polémica”, surja em muitos feeds, irá repetir-se ainda mais. A sua omnipresença tende a gerar um efeito automático e acrítico de “verdade”. Exemplo? A impostura do chamado “Pizzagate”, sobre uma rede de pedofilia, a funcionar a partir de um restaurante de Washington, organizada por elementos próximos de Hillary Clinton…
Por alguma razão, ao longo destes cinco anos muitos órgãos de informação de todo o mundo (BBC, CNN, The Washington Post, etc.) montaram gabinetes de análise da veracidade das informações que circulam “automaticamente” na Net, sobretudo no Facebook. An Ugly Truth é um livro precioso para conhecermos tal conjuntura e o desafio que, não poucas vezes, o seu funcionamento representa para os valores democráticos. Ou como se dizia, em 2010, no cartaz do filme A Rede Social: “Não é possível obter 500 milhões de amigos sem fazer alguns inimigos.”