Lia Carvalho, Bárbara Branco, Ana Marta Ferreira e Carolina Carvalho |
Evocando a saga da Doce, o filme Bem Bom apresenta-se limitado pela sua lógica televisiva, embora tendo como trunfo o quarteto de actrizes principais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Julho), com o título 'Memórias entre escândalo e popularidade'.
Curioso fenómeno mediático: há uma ideologia “redentora” que gosta de reduzir a nossa história colectiva a uma colecção de contrastes maniqueístas. Exemplo corrente é a descrição do 25 de abril como um milagre sem passado, a não ser Salazar e a PIDE. Como se a inventariação dos símbolos da ditadura dispensasse o conhecimento das pessoas que nasceram e viveram no tempo do Estado Novo.
O filme Bem Bom, realizado por Patrícia Sequeira, não é estranho a essa ideologia. Neste caso, o retrato das Doce parece reduzir-se a uma cruzada feminista que veio purificar o pântano cultural que se seguiu ao 25 de abril… Mesmo aceitando a ideia de que os homens eram um sinistro batalhão de obscenidades, parece difícil sustentar a noção de que as Doce foram, em 1979, a vanguarda de um Portugal finalmente liberto de todos os conformismos. “Elas sabem cantar, brilham a dançar e escandalizam o país…”, diz a sinopse oficial do filme para, na frase seguinte, proclamar exactamente o contrário: “Elas tornam-se um fenómeno de popularidade.”
Não está em causa a legitimidade de definir as Doce (ou qualquer outro fenómeno cultural) de uma maneira ou de outra. O que se discute é o facto de haver toda uma lógica televisiva — que Bem Bom reflecte de princípio a fim, com a sua montagem acelerada, vistosa e nem sempre muito atenta às especificidades de cada situação dramática — que “obriga” a que as personagens existam menos como pessoas e mais como bandeiras para ilustrar uma “causa”.
Seja como for, importa não simplificar ainda mais e, como lembra a sabedoria popular, não deitar fora o bebé com a água do banho… Parece evidente que Bem Bom resulta de um trabalho genuinamente empenhado, tentando, pelo menos, vislumbrar a hipótese de um cinema português sem preconceitos de se envolver com fenómenos como as Doce.
Até porque, importa também sublinhar que, a partir do momento em que é evocado o processo de difamação das Doce (através de um boato sórdido), o filme consegue gerar alguns momentos mais subtis em que as personagens são libertadas do peso de ilustrarem um “simbolismo” anterior ao próprio trabalho narrativo. O mérito das actrizes (e da sua direcção, naturalmente) é decisivo. Ou seja: Lia Carvalho, Bárbara Branco, Carolina Carvalho e Ana Marta Ferreira, interpretando, respectivamente, Teresa Miguel, Fátima Padinha, Lena Coelho e Laura Diogo. Há nelas os sinais de um talento plural que, devidamente enquadrado e desenvolvido, só pode ser enriquecedor para o cinema (e, já agora, para as produções televisivas).
Resta dizer que ninguém detém o exclusivo do escândalo. Em nome da mais básica atenção à complexidade histórica (do cinema e do país), valerá a pena recordar que 1979 foi, justamente, o ano de um verdadeiro escândalo cultural. A saber: a série televisiva, depois filme, Amor de Perdição, com assinatura de Manoel de Oliveira — existe, aliás, uma galeria imensa de espectadores que julgam saber tudo sobre o filme sem nunca terem mostrado disponibilidade para o ver. Esperemos que cada um pense pela sua cabeça e que Bem Bom não seja objecto de um assombramento do mesmo género.
O filme Bem Bom, realizado por Patrícia Sequeira, não é estranho a essa ideologia. Neste caso, o retrato das Doce parece reduzir-se a uma cruzada feminista que veio purificar o pântano cultural que se seguiu ao 25 de abril… Mesmo aceitando a ideia de que os homens eram um sinistro batalhão de obscenidades, parece difícil sustentar a noção de que as Doce foram, em 1979, a vanguarda de um Portugal finalmente liberto de todos os conformismos. “Elas sabem cantar, brilham a dançar e escandalizam o país…”, diz a sinopse oficial do filme para, na frase seguinte, proclamar exactamente o contrário: “Elas tornam-se um fenómeno de popularidade.”
Não está em causa a legitimidade de definir as Doce (ou qualquer outro fenómeno cultural) de uma maneira ou de outra. O que se discute é o facto de haver toda uma lógica televisiva — que Bem Bom reflecte de princípio a fim, com a sua montagem acelerada, vistosa e nem sempre muito atenta às especificidades de cada situação dramática — que “obriga” a que as personagens existam menos como pessoas e mais como bandeiras para ilustrar uma “causa”.
Seja como for, importa não simplificar ainda mais e, como lembra a sabedoria popular, não deitar fora o bebé com a água do banho… Parece evidente que Bem Bom resulta de um trabalho genuinamente empenhado, tentando, pelo menos, vislumbrar a hipótese de um cinema português sem preconceitos de se envolver com fenómenos como as Doce.
Até porque, importa também sublinhar que, a partir do momento em que é evocado o processo de difamação das Doce (através de um boato sórdido), o filme consegue gerar alguns momentos mais subtis em que as personagens são libertadas do peso de ilustrarem um “simbolismo” anterior ao próprio trabalho narrativo. O mérito das actrizes (e da sua direcção, naturalmente) é decisivo. Ou seja: Lia Carvalho, Bárbara Branco, Carolina Carvalho e Ana Marta Ferreira, interpretando, respectivamente, Teresa Miguel, Fátima Padinha, Lena Coelho e Laura Diogo. Há nelas os sinais de um talento plural que, devidamente enquadrado e desenvolvido, só pode ser enriquecedor para o cinema (e, já agora, para as produções televisivas).
Resta dizer que ninguém detém o exclusivo do escândalo. Em nome da mais básica atenção à complexidade histórica (do cinema e do país), valerá a pena recordar que 1979 foi, justamente, o ano de um verdadeiro escândalo cultural. A saber: a série televisiva, depois filme, Amor de Perdição, com assinatura de Manoel de Oliveira — existe, aliás, uma galeria imensa de espectadores que julgam saber tudo sobre o filme sem nunca terem mostrado disponibilidade para o ver. Esperemos que cada um pense pela sua cabeça e que Bem Bom não seja objecto de um assombramento do mesmo género.