segunda-feira, julho 05, 2021

Philippe Sollers
ou a alegria dos agentes secretos

Num livro auto-biográfico, Philippe Sollers propõe a redescoberta de Cortina Rasgada, um filme de Alfred Hitchcock — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 maio).

Vivemos em pleno niilismo mediático. Da política ao futebol, acordamos de manhã, ligamos as nossas antenas e ficamos a saber que nem sequer faz sentido temer o apocalipse — já aconteceu, é tudo pós-apocalítico, nada resta do humano a não ser a miséria das suas obscenidades. Neste tempo que elegeu a queixa e a denúncia como linguagens dominantes, alguém se escapa às obrigações niilistas, escrevendo assim: “A alegria é a minha filosofia essencial. Alegria, jóias, pensem o que quiserem, mas a alegria antes de tudo. É uma espécie de contemplação contínua.”
Importa dizer que a ligação das palavras “alegria” e “jóias” não é tão arbitrária quanto parece. Primeiro, por causa das semelhanças da sua sonoridade em francês: “joie” e “joyaux”. Depois, porque o autor nasceu Philippe Joyaux, a 28 de novembro de 1936, tendo desde o primeiro romance (Uma Curiosa Solidão, 1958) adoptado a assinatura de Philippe Sollers.
Com uma obra imensa, nos últimos anos repartida por romances breves que existem como outros tantos opúsculos filosóficos (Désir e Légende, de 2020 e 2021, são os mais recentes), Sollers escreve sobre a alegria em Agent Secret (Mercure de France, 2021), afinal um livro auto-biográfico. Não no sentido pitoresco de acumulação de lugares e datas. Antes resistindo à pornografia confessional do presente, celebrando um segredo ambíguo, partilhado com os outros, dos outros escondido. Está no título, envolve um método de viver e pensar: “Como uma criança, corro muito depressa, é normal, sou um agente secreto. Sem segredo não há nada.” Um verdadeiro programa político que a língua francesa consagra com discreta elegância: a mesma palavra, “secret”, serve para dar nome e adjectivar: “segredo” e “secreto”.
Através da colagem de evocações familiares, imagens e variações políticas e poéticas, a estrutura de Agent Secret faz lembrar o clássico Roland Barthes por Roland Barthes (Edições 70), cuja primeira edição surgiu em 1975. Não por acaso, como é óbvio: Sollers foi editor de Barthes, evocando o mestre e amigo em algumas das páginas mais comoventes de Agent Secret. Morto num acidente em 1980, contava 64 anos, Barthes foi também um modelo do paradoxo que ilumina a escrita de Sollers: contundência e discrição. Sollers resume, assim, o estado das coisas: “A discrição é, na verdade, qualquer coisa de delicioso, oposto a tudo aquilo que invadiu o espaço humano, agora dedicado ao jornalismo absoluto em que tudo é, por definição, indiscreto. Com a chegada da Internet, vivemos numa sociedade de indiscrição generalizada.”
Daí a atenção prestada por Sollers a todos os sistemas, sejam eles políticos ou de linguagem (uns confundem-se com os outros), que tentam encerrar a singularidade humana em modelos fechados e, em última instância, repressivos. Num capítulo fascinante de Agent Secret, Sollers refere o “período extremamente tenso” que estamos a viver, assombrado por um “desejo de totalitarismo”, para evocar alguém que “como ninguém, compreendeu esse totalitarismo interior”. A saber: Alfred Hitchcock (1899-1980).
Numa breve deambulação “hitchcockiana”, Sollers cita um dos seus filmes menos vistos, durante décadas amaldiçoado por um imaginário de esquerda, de sensibilidade comunista: Cortina Rasgada (1966), “thriller” com Paul Newman e Julie Andrews (de que Sollers publica o maravilho cartaz francês, Le Rideau Déchiré). Será preciso lembrar que se trata de uma espécie de anti-James Bond, tendo por pano de fundo as tensões sinalizadas pela Cortina de Ferro? É a aventura de um cientista americano (Newman) que, em pose de agente secreto, se infiltra nos meios académicos da Alemanha de Leste, país peão da URSS, para tentar roubar a fórmula científica que permitirá fabricar uma nova arma de guerra…
Sollers recorda o óbvio, isto é, o modo como esse “jesuíta britânico” que era Hitchcock se empenhou “contra o totalitarismo estalinista da época”. Destaca, em particular, a cena da fuga dos protagonistas quando, na plateia de uma sala de espectáculos já rodeada por elementos da polícia e dos serviços secretos, Newman instala uma confusão salvadora, gritando: “Fogo!” Como escreve Sollers, assistimos ao triunfo de uma regra fundamental no universo de Hitchcock: “o espectáculo dentro do espectáculo”. Ou ainda: “o teatro dentro do teatro, como em Shakespeare”. Tudo isto, claro, encenado com sereníssima alegria.