sábado, julho 03, 2021

Augusto M. Seabra
ou os filmes do nosso deslumbramento

Ao longo do mês de junho, a Cinemateca Portuguesa apresentou um ciclo intitulado "Carta branca a Augusto M. Seabra": através do seu trabalho crítico, podemos redescobrir as fascinantes cumplicidades de cinema e escrita — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 junho).

No texto de apresentação do ciclo “Carta branca a Augusto M. Seabra” [iniciado com Cinq et la Peau, de Pierre Rissient], leio uma memória a que o tempo emprestou um belo simbolismo: o seu primeiro texto crítico, publicado no semanário Expresso, foi sobre o filme Providence (1977), de Alain Resnais.
A evocação leva-me a convocar a minha própria memória da década de 80, quando, também no Expresso, tive o privilégio de trabalhar com o Augusto. No mesmo texto da Cinemateca, a propósito da sua atenção à “vertente popular” do cinema, há uma outra referência a que sou particularmente sensível. A saber: o seu artigo sobre a passagem de E.T., o Extraterrestre, de Steven Spielberg, no Festival de Cannes de 1982, chamando-lhe “o filme do nosso deslumbramento”. Alguns meses depois, aquando da sua estreia em Portugal, a secção de cinema produziu um enorme dossier sobre a actualidade do grande cinema dos EUA (foi capa da “Revista”) e confesso que continua a ser com um misto de perplexidade e carinho que me recordo do choque de algumas pessoas por estarmos a dar tal evidência a uma “americanada”…
Agora que o Augusto decidiu doar o seu espólio documental a várias instituições públicas (com a parte do cinema a ser acolhida pela Cinemateca), quero celebrar o seu militante gosto pelo conhecimento da pluralidade do cinema que envolve também, radicalmente, um pensamento plural dos filmes — e com os filmes.
Bem sei que ao escrever a palavra “gosto” atraio um rol de equívocos, incluindo a estupidez chantagista que leva a fixar, opondo, o “gosto do público” e o “gosto da crítica”. Lembremos apenas que tais generalizações nunca existiram e que, justamente, o labor específico da crítica não se define a partir de uma qualquer unificação de pontos de vista, antes procurando — e, mais do que isso, desejando — abrir sempre mais o espaço de conhecimento histórico, partilha afectiva e exploração filosófica (dos filmes, neste caso).
Quis encontrar uma boa imagem de Providence para ilustrar este texto. Pensei, claro, no misto de imponência e fragilidade de John Gielgud, interpretando Clive Langham, o escritor que, à boa maneira de qualquer herói de Resnais, habita o turbilhão do tempo sem que seja possível aquietar a memória e a paradoxal verdade das suas invenções. Pensei em Ellen Burstyn (no papel de Sonia, mulher de um dos filhos de Clive), quanto mais não fosse para “legitimar” um daqueles arroubos críticos a que, de vez em quando, vale a pena ceder, escrevendo que ela é, provavelmente, a mais espantosa actriz que as câmaras algumas vez filmaram.
Até que, perdoem-me a insolência, atrevi-me a repetir o magistral axioma de Pablo Picasso: “Não procuro, encontro”. Isto porque, no labirinto de imagens que o mundo virtual nos faculta, alimentando uma perdição que tão mal conhecemos, surgiu o cartaz original do filme, assinado por esse admirável desenhador/ilustrador que foi René Ferracci (1927-1982).
A quem pertence aquela mão decepada? Em boa verdade, não creio que a pergunta seja muito interessante. Porquê? Porque a intensidade do cartaz começa na festiva contradição que Ferracci encena: a mão que morre é também a mão que renasce para a escrita.
Gosto desta ideia. Impopular, bem sei. Escrevemos para seguir uma visão, ideia ou pensamento que rasgou o nosso corpo, abrindo uma clivagem na nossa identidade. No trabalho crítico do Augusto, encontro esse andamento (sublinho a conotação musical da palavra) que resiste à noção corrente de “especialista” como aquele que ensina os outros a pensar… E acredito que, de vez em quando, aconteça o milagre de o leitor descobrir o seu próprio pensamento.
De onde vem esse pensamento? De onde vem qualquer pensamento? Ferracci desenha a mão que escreve usando uma caneta/árvore ligada à energia primordial da natureza. Aliás, o inusitado instrumento de trabalho guarda as suas raízes, definindo o labor da escrita como uma tarefa em que, conscientemente ou não, expomos a nossa relação com o corpo materno da terra. Resnais é um cineasta dessa vibração interior das palavras. Foi ele que, em Hiroshima, Meu Amor (1959), criou as imagens que se colam à frase escrita por Marguerite Duras: “Tu não viste nada em Hiroshima.”