sábado, junho 12, 2021

"Na Cama com Madonna", 30 anos depois

Na Cama com Madonna perfaz 30 anos: muito mais do que o simples registo de uma digressão, o filme dirigido por Alek Keshishian é hoje um clássico do género documental este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 maio), com o título 'A música, o espectáculo, a sua estrela e o filme dela'.

Em 1991, a Palma de Ouro do Festival de Cannes foi para Barton Fink, dos irmãos Coen. Nesse ano, a competição foi uma pequena avalanche de filmes tão originais quanto surpreendentes: A Bela Impertinente (Jacques Rivette), A Dupla Vida de Véronique (Krzysztof Kieslowski), A Febre da Selva (Spike Lee), Malina (Werner Schroeter), Van Gogh (Maurice Pialat)… Apesar disso, o filme que dominou todas as manchetes foi apresentado extra-competição: Na Cama com Madonna — a sua estreia ocorreu no dia 10 de maio [faz hoje trinta anos].
Rezam as crónicas que a palavra “escândalo” surgiu muitas vezes associada ao filme. E por razões que remetem para a digressão de Madonna (“Blond Ambition Tour”, entre abril e agosto de 1990), precisamente o assunto central do filme. De facto, alguns elementos de encenação das canções, em especial as alusões sexuais durante a interpretação de Like a Virgin, suscitaram reparos de autoridades que, nas respectivas cidades, chegaram a tentar suprimir o respectivo quadro do alinhamento do espectáculo.
Três décadas depois, tais atribulações adquiriram os contornos de um banal “fait divers”. O que resta é um filme que, muito para lá da mera reportagem de uma digressão, se impôs como um verdadeiro clássico na história do género documental — em particular na transformação das relações entre câmaras, performances musicais e vida de bastidores.
Em boa verdade, o projecto nasceu sob o signo da dúvida. Desde logo, no plano comercial: o discreto impacto do documentário dos U2, Rattle and Hum, lançado três anos antes, parecia indicar que o chamado “filme-concerto” tinha deixado de ser um género apelativo (neste caso, apesar de o álbum Rattle and Hum ter conseguido vendas espectaculares, liderando durante seis semanas a tabela da revista Billboard).
Além do mais, o filme só inicialmente foi concebido como um simples registo da digressão. David Fincher, que já tinha dirigido vários telediscos de Madonna (incluindo o emblemático Express Yourself, lançado em 1989), chegou a estar envolvido no projecto, mas afastou-se quando surgiu a oportunidade de realizar a sua primeira longa-metragem para cinema (Alien 3). Madonna entregou a realização a Alek Keshishian depois de conhecer o seu trabalho no âmbito dos estudos universitários, em Harvard. Foi o próprio Keshishian que, ao acompanhar a preparação da digressão, acabou por sugerir que os bastidores não fossem reduzidos a detalhes mais ou menos pitorescos, adquirindo o peso de um capítulo específico. Consequência prática: o filme divide-se em sequências a cores, para os números musicais, e momentos a preto e branco, acompanhando um pouco de tudo, desde uma das referidas tentativas para suprimir alguns elementos de encenação (em Toronto), até uma conversa telefónica em que o pai de Madonna lhe pergunta se lhe pode arranjar alguns bilhetes…
Para a história, o filme contém momentos que, pela sua singularidade, ajudaram a consolidar a dimensão de objecto de culto. Por exemplo, a chamada do pai ao palco, em Detroit, para que o público lhe cante o “Parabéns a você”, seguindo-se uma cena em que Madonna visita a campa da mãe, ou ainda o crescente mal estar de Warren Beatty (na altura companheiro de Madonna) com a intromissão das câmaras de Keshishian.


Há no filme um intimismo ambíguo que, afinal, ajuda a explicar os dois títulos: Truth or Dare (tal como passou em Cannes), depois Na Cama com Madonna. O primeiro refere-se ao jogo “Verdade ou Consequência” que, a certa altura, domina uma cena de Madonna com vários elementos da digressão; o segundo decorre de uma situação em que os bailarinos se “amontoam” na cama do quarto de Madonna, numa bizarra performance alheia a qualquer divagação erótica, a não ser enquanto celebração e paródia de todas as diferenças sexuais.
A três décadas de distância, compreendemos que, através das apoteoses do espectáculo, a colaboração de Madonna com Keshishian gerou um objecto confessional que não pode ser dissociado da narrativa “auto-biográfica” que a Material Girl foi elaborando através das suas canções. Assim, a condição de estrela envolve um sofisticado paradoxo: viver no coração do espectáculo é também saber gerir as suas imagens privadas.